Este diálogo surdo, que encontrei no Regueirão dos Anjos, em Lisboa, apresenta duas perguntas pertinentes: «Alguém perdeu o meu coração?» e «Alguém encontrou o meu coração?». Possivelmente, uma terá inspirado a outra. Mas, para quem passa, é impossível saber que pergunta terá surgido primeiro.
Perguntar se alguém encontrou o coração de uma pessoa equivale a dizer que o seu coração está disponível, e que se tem esperança de que alguém o tenha encontrado. Pelo contrário, perguntar se alguém o perdeu, é um acto mais desesperado, de quem sente que já não é correspondido. E o amor pode levar a estas duas atitudes – esperança ou desespero. Porque o amor é, em si próprio, contraditório. É «fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente», é um «contentamento descontente», como já dizia Camões.
Mas é também o amor que nos garante a existência, seja o amor por filhos, maridos ou mulheres, ou por amigos. Porque são os laços que estabelecemos com os outros que nos dão a nossa própria medida e nos permitem ver como realmente somos. São os outros que nos devolvem a imagem que neles projetamos e que, no fundo, reflecte aquilo que somos, mesmo quando não o fazemos de forma consciente, ou quando projetamos outra imagem de nós, exatamente porque quando estamos a tentar ser diferentes, é isso mesmo que somos. Porque aquilo que vemos é o nosso reflexo.
Como diz Afonso Cruz: «O reflexo olha para nós. Ou seja, constrói-nos ao regressar ao ponto de partida. (…) Todos os leitores estão, na verdade, a ler a sua própria consciência. Seja quando abrem um livro, seja quando olham pela janela, porque em ambos os casos, estamos a olhar para espelhos». E, também, Anais Nin o diz: «Não vemos as coisas como elas são. Vemos as coisas como nós somos». E se nós também somos os outros, todos percebemos o mundo à nossa maneira e nele nos vemos reflectidos, tal como os outros se veem refletidos em nós. Porque a imagem no espelho, ao reflectir, é circular. Devolve-nos aquilo que vemos ou que o que pensamos, ou queremos, ver.
Ao entregarmos o nosso coração a alguém é porque vemos nessa pessoa traços com que nos identificamos, dos quais gostamos, mesmo que seja por serem tão diferentes de nós. E o coração perde-se ou encontra-se quando nos afastamos ou aproximamos dos outros; quando deixamos que os outros vejam aquilo que queremos mostrar ou quando não deixamos que o vejam.
Diz, curiosamente, Rui Costa num poema: «digo o contrário / do que quero / para que no espelho / a imagem não surja / invertida». Muitas pessoas preocupam-se mais com a imagem no espelho do que com a realidade, como se essa outra faceta da realidade estivesse ao mesmo nível ou fosse superior à realidade em que vivemos. Importa, pois, saber viver, sem medo de nada nem de ninguém, de anjos ou demónios, de profetas ou terroristas.