Flak: ‘Sou um incompetente em tudo o que não me apetece!’

Escrevo ao sol. Ao Sol da Manhã, podia dizer o João. Escrevo Sobre o Mar, também podia deixá-lo cantar. Na esplanada do Bob’s, que tem este nome por causa do Bob Marley, em Colva, não longe de Margão, no «panchayat» de Salcete, Goa, Índia. Fica mesmo assim: parece que só falta o código postal. O…

Claro que a conversa fora antes, noutra Índia, ali ao Bairro Alto, Rua do Norte onde só entra o vento sul. Conversas da Rua do Norte. Em ritmo lento de rolar na areia. Mas escrevi aqui. Onde crucitam os corvos nas sombras das palmeiras.
Tinha sido assim, como segue abaixo.

Há quanto tempo não lançavas um disco?

Desde 2015.

Muito tempo, não?

Não, acaba por não ser. Porque entre o trabalho de compor as canções, conseguir gravá-las, produzi-las, misturá-las e por aí fora, três anos não é assim muito. O processo foi longo. E o Benjamim, que convidei para produzir este disco, também tinha muito trabalho pelo meio. Fomos fazendo à medida das nossas disponibilidades.

Ora bem, mas tu também produzes. Tens-te dividido entre compor e produzir.

Sim. Mas aquilo que gosto mesmo de fazer é compor. Escrever músicas.

Produzir é burocrático?

Não diria tanto. Mas é mais técnico. Às vezes não tenho paciência. Gosto de registar as ideias.Mas tratar dos arranjos, pôr tudo com um bom som, audível, é algo que não gosto de fazer sozinho. Se tiver de fazer, faço; mas gosto de ter companhia. A minha fase preferida da música é a fase inicial. Ter a adrenalina da ideia.

Mesmo em grupo já eras tu o compositor.

Sim, sim. Na fase dos Rádio Macau. mas havia uma diferença: improvisámos muito e depois eu editava. A composição nascia de um trabalho de grupo. Havia muitas ideias dadas por todos. Criar a estrutura era comigo. É do que gosto mais.

Com tudo isso que viveste nos Rádio Macau, hoje não te sentes sozinho no teu trabalho?

Compor acaba por ser um ato solitário. Estar com uma série de gente num estúdio, com cada um a contribuir, é uma coisa. E divertida. Agora estar com outra pessoa, a meias, não me agrada. Prefiro estar sozinho. Mas gosto de ter uma ideia, mostrá-la, e ouvir opiniões. E incorporar nos arranjos sugestões alheias para não ser sempre eu comigo mesmo.

Fazias música e letra?

Nos Rádio Macau, não. Tinha algumas letras. Como a Xana também tinha. No início da banda, quem cantava era o Vitinha, que escrevia as letras. Ficámos amigos, criámos cumplicidade, e depois já lhe propunha alterações. Vivíamos no Algueirão, Mem Martins, havia um grupo de beat, e um tipo mais velho, falha-me agora o nome, vive hoje em Leiria, começou a mostrar um versos à miudagem.Fazia livros artesanais. Em Rio de Mouro abriu-se esse campo de contacto.  Foi uma conjugação muito gira.

O Cristo de Macau…

Porquê Rádio Macau? Quem se lembrou de tal coisa?

Hmmm… Quem se lembrou disso? Eu e o Alex Cortez Pinto formámos alguns grupos em miúdos, tocávamos nos bailes de liceu, ali na zona. Tínhamos uns 15 ou 16 anos. E tivemos vários nomes. Depois o Alexandre teve a ideia de fazer um cartaz para um concerto. Com uma caveira. Assim muito hard rock. Pôs-lhe o nome de Crânio. Tocávamos umas coisas dos Rolling Stones…

Uns covers?

Isso. Mas fomos começando a levar a coisa mais a sério. Entrou oVitinha. AXana começou a cantar connosco. Pensámos que era necessário arranjar um nome mais decente. Fizemos umas listas, discutíamos no café, não estávamos de acordo com nenhum. Um dia, numa esplanada, apareceu um amigo nosso que vivia em Macau, barba e cabelo comprido, parecia o Cristo. Vinha a descer a rua com uma T-Shirt cheia de símbolos chineses, a dizer Rádio Macau. Adorámos os símbolos. O nome ficou.

Isso fez-vos, mais tarde, te alguma relação especial com Macau?

Nem por isso. Fomos lá tocar em 1989. Voltei lá umas três vezes. Uma com os Xutos e Pontapés; outra com a Xana; e outra ainda com o Jorge Palma. Nada mais.

Falas do Jorge e a verdade é que tiveste muita importância no reaparecimento dele nos anos mais recentes.

Ele foi muito ativo na discografia entre os anos 70 e 80. Depois em 1991 gravou aquele disco só com piano e voz, na altura em que acabou o curso do conservatório. Mas já não era de originais. E ficou dez anos sem gravar nada de original. Mesmo o Palmas Gang era dedicado a versões rock de canções antigas. Tocava em concertos, aqui e ali, começou a convidar-me para ir com ele, sempre fazíamos companhia um ao outro nas viagens, coincidiu com a paragem dos Rádio Macau. Acabou por ser bom para ele, penso, a parceria. Era muito respeitado como autor, mas não tinha aquela popularidade que hoje tem. Entre 1994 e 2000, estivemos em todo o lado, de centros paroquiais a bares, o que fez com que a música dele chegasse a mais pessoas.

Achas que também pelo facto de as letras dele dizerem menos à malta mais jovem? Distanciou-o?

Acho que a sua fase de menor reconhecimento teve que ver com o facto de os anos 80 terem sido a fase da grande explosão da música portuguesa mas ele vir de um rock progressivo, uma tendência mais hippy, fora da caixa. E, apesar de não gravar nessa altura, os ano 90 aproximaram-no mais das pessoas. Mediaticamente passou ao lado da moda. Hoje é um músico consensual. Na altura não. 

Os ares da época…

Já os Rádio Macau foram muito populares…

Porque nos adaptámos aos ares da época. A nossa música tinha muita influência new wave, o que agradava muito, em geral. 

Ter uma mulher a cantar também marcava a diferença?

Acho que sim. Era diferente. E entrámos naquele grupo de meia dúzia de bandas que tiveram acesso ao top. Fomos uns privilegiados, não há dúvida. 

Tens saudades desse tempo?

De quê? De andar na moda? Não! Nada disso. Não sou nostálgico de forma alguma. Às vezes perguntam-me: então por que não recuperam os Rádio Macau? Eu respondo que não faz sentido. Preciso de fazer alguma coisa de novo. É para isso que trabalho. 

Rádio Macau é um projeto que acabou?

Sim. Bom… Claro que não quer dizer que não nos juntemos um dia, para tocarmos, fazermos um concerto. Agora, trabalhar com aquela estrutura que tivemos para voltarmos a compor, não dá. O mundo mudou. Houve um tempo em que vivíamos da música, e vivíamos bem. Justificava termos gente a trabalhar connosco, algo que hoje não compensa. Não é rentável como era. Trabalhar por um quarto ou por um quinto do dinheiro que ganhávamos não é apelativo para ninguém. Além de que cada um seguiu a sua vida. Repara: os músico com que toco agora são muito melhores do que os que havia nos anos 80 mas ganham muito menos do que eu ganhava há vinte anos.

Os concertos continuam a ter um grande peso financeiro na vossa vida de músicos?

Já na altura era assim. Agora são fundamentais! A verdade é que a fase em que os discos deram mais dinheiro em Portugal foi nos anos 90. Ainda por cima, aquele tempo em que estivemos parados. Foi aí que o Rui Veloso, os Delfins, o Paulo Gonzo, os Silence 4, conseguiam chegar aos 200 mil discos. Isso acabou. Hoje os discos não se vendem. Mas nos anos 80, no tempo do vinil, as vendas também eram residuais. A chegada do CD provocou um «boom» na compra de discos até chegar a versão digital. A galinha dos ovos de ouro acabou e entrava pelos olhos dentro que iria acabar. A verdade é que não se conseguiu evitar o seu fim. Já nem os carros vêm com leitores de CD.

O que é que te faz querer editar um disco, então?

Não conseguir estar parado. Gosto de escrever, de compor, de canções. Apetece-me. Os anos vão passando, estou a chegar aos 60 não tarda, se não fizer certas coisas agora vou ficar sem as fazer nunca. Estou com uma certa pressa.

Quando é que sentiste que querias ser músico?

Muito novo. Comecei a pensar que não me apetecia ter um emprego e um patrão. Detesto levantar-me cedo! Sempre detestei. Era de chegar atrasado ás aulas da manhã.

Assim, emprego emprego, só se fosses guarda noturno.

Acredita, não consigo fazer coisas que não me apetecem. Não me concentro. Sou um incompetente em tudo o que não me apetece. Depois o meu pai…

Que foi guarda-redes da Académica!

Sim, da Académica e da selecção nacional de andebol de onze. O meu pai insistia para eu fazer desporto. Dizia que me iria permitir viajar um bocado de um lado para o outro. O pior é que eu não tinha jeito nenhum para aquilo. Vi logo que não ia longe.

O teu pai fazia o quê como profissão?

Era engenheiro hidráulico. Aliás, a razão porque jogou na Académica foi por ter tirado parte do curso em Coimbra. Começou no Técnico, passou porCoimbra e acabou no Porto onde foi guarda-redes de andebol de onze do FC Porto.

Como era conhecido?

Era o Pauleri. Ainda teve uma proposta para ser profissional de futebol do Salgueiros. Mas ele queria acabar o curso.

Herdaste da parte dele algum desse diletantismo?

Ele gostava da parte das deslocações, ir jogar aqui e ali, às vezes ao estrangeiro. Eu não conseguiria nunca ser desportista. Resolvi dedicar-me á música.

Mas sabias música? Estudaste?

Não. Nunca estudei música regularmente. Estive três ou quatro anos aqui na Companhia dos Amadores de Música, com a Xana, aprendi as bases do solfejo e do piano, estive no Hot Clube, o meu pai ainda me pagou umas aulas de guitarra, mas não fui metódico. O que gostava era de fazer canções. E quando comecei, qualquer um pegava numa guitarra e fazia músicas sem saber muito de música. Por isso é que o Jorge Palma era diferente…

Esse sabia de música.

Sim. Mas a moda andava muito em redor daqueles que eram autodidatas. E eu fui nessa onda. 

A vida do teu pai obrigou-te a andar de um lado para o outro quando miúdo, não?

Não. Porque eu nasci tarde. O meu pai já andava nos trinta e tal anos quando eu e a minha irmã aparecemos. Tinha deixado a vida desportiva, veio trabalhar para uma empresa, em Lisboa, gerida pelo meu avô, em seguida numa metalúrgica. Assentou.

Quem foram os teus primeiros companheiros musicais?

Quando se deu o 25 de Abril eu tinha 13 anos. O meu pai sempre foi de esquerda, com ideais comunistas, mas era mais em casa, não na prática, Eu decidi ser ativo. Inscrevi-me na UEC, União dos Estudantes Comunistas. Parávamos pouco no centro de trabalho do partido mas íamos para casa uns dos outros discutir política, fumar erva, que comprávamos ali no Rossio, e tocar guitarra. Foi aí que comecei a tocar com o Alex, também da UEC, e foi a minha única experiência com drogas.

Logo na UEC!

É verdade. Formámos um grupo. Comprei uma bateria. Tínhamos um amigo, o Rui, com uma cave, como é habitual nestas coisas…

Foi a génese dos Rádio Macau?

Foi. 

No Algueirão?

Sim. Eu nasci e vivi em Lisboa, no Bairro das Colónias, até aos quatro anos. Mas a minha avó materna, que era da Póvoa deVarzim, de uma família sem muito dinheiro, lá conseguiu juntar algum e comprou uma casa em Mem Martins. Nessa altura, eram só quintas e quintinhas. Conhecemo-nos todos nessa zona. Portanto, comecei primeiro com o Alex e só depois apareceu a Xana, que é mais nova. E depois o tal pessoal de Rio de Mouro do qual já falei.

Olha, o vosso fim foi pacífico? Os Rádio Macau acabaram bem?

Foi um processo muito natural. No sentido em que estivemos muitos anos juntos. Em 1976 ou 77 já dava os meus primeiros concertos com o Alex. E mantivemo-nos juntos até 1993. A tocar, a compor, em concertos por todo o lado. Ficámos cansados. Naturalmente. Estávamos sempre dependentes uns dos outros, havia aquele compromisso permanente. Cada um começou a querer seguir o seu caminho, desenvolver as suas ideias. Depois havia muito gente a trabalhar connosco, de técnico de som a técnico de luzes, o que exigia que nos mantivéssemos ativos de forma a pagar a todos. O Marca Amarela já é um disco meio híbrido. Pouco compacto, muita coisa misturada. Era a fase da saturação. Já não nos apetecia aquela rotina. Foi de tal forma pacífico que a Xana quis fazer um disco a solo e eu ajudei-a. Era diferente. Não nos responsabilizava a todos. 

Mas havia a ideia do regresso. Tanto que voltaram a tocar juntos.

Sim. Combinámos que iríamos parar durante uns anos e voltar no ano 2000, assim no início do século. Entretanto fiz um disco a solo, toquei com o Palma. Depois voltámos entre 2000 e 2009, mas a segunda fase dos Rádio Macau já foi muito diferente, Tínhamos crescido. Não éramos mais aquele grupo de miúdos que passavam a vida na casa uns dos outros. Não havia a mesma energia. Ainda fizemos três discos, mas foi sempre a esmorecer. 

Frente de Libertação dos Apanhados da Cabeça

Vamos falar do teu primeiro disco a solo ‘Flak 1998’. O que é que o distinguia? O que tinha mais de teu?

Descobri que quando faço uma canção do princípio ao fim, por inteiro, lhe dou um toque muito mais envolvido. Existe uma construção mental. Há que dizer que não sou especialmente dotado para a música. Aliás, não sou especialmente dotado para nada.

Isso é duro para contigo…

É não ser um inspirado. É ser mais estruturado do que inspirado. Mais trabalho do que talento. Não sou um grande guitarrista. Tenho é muitos anos a tocar guitarra, muitos anos de palco.

Olha que, ao contrário do que dizes, tens fama de ser um bom guitarrista.

É mais uma questão de entrega do que de técnica. Tanta gente toca muito melhor do que eu, mas talvez sem a energia que tenho e passa para as pessoas que me ouvem.

Tens um prazer especial?

É. Mas escuta, nunca tive uma preocupação muito grande em aperfeiçoar-me. Excetuando a fase em que passei pelo Hot Club. Aí estudei um bocadinho. Quis ser mais consistente. Não sou um instrumentista. A guitarra, como qualquer outro instrumento, é um meio que utilizo para compor.

Num disco como este que saiu, Cidade Fantástica, fazes tudo?

Toquei os instrumentos todos, sim. Na maquete. Mas em seguida falei com o Benjamim, com o António Vasconcelos Dias, e com o Zé Guilherme, e fizemos o trabalho final. Toco guitarra e teclados. Só não toco bateria. Ou seja, três pessoas fazem o disco.

Esta serpente que surge na contracapa tem um significado especial?

A Manuela Peixoto, a Mané, a ilustradora, foi pegar em vários elementos das letras das músicas e, de facto, a serpente surge aqui e ali. Tenho uma certa tendência para me dispersar e, por isso, desta vez resolvi colocar algumas balizas no meu trabalho de escrita. Decidi que não haveria letras dedicadas a outras pessoas. São imagens. Cores.

Não há diálogo?

Sim. Não há diálogo. Não há nada que seja uma mensagem para outra pessoa. Com exceção da canção que fecha o disco, Apenas um Instante. Aí tinha mesmo de ser! Nas outras, tentei associar sons a imagens, a cores, uma certa transcrição daquilo que se vai passando no que penso. O vinil até tem mais alguns desenhos do que oCD. E aí a representação é feliz.

Quando é que começaste a ser Flak?

No liceu. 

Não foi nome artístico? Colou-se a ti?

Não. Nenhum nome artístico. Surgiu com todas aquelas siglas dos partidos a seguir ao 25 de Abril. Era o MRPP, o PCP(ML), o MES a AOC, por aí fora. Vivíamos naquela confusão das greves de alunos, de professores…

As famosas RGA?

As Reuniões Gerais de Alunos. Que enchiam ginásios. Escrevi e fotocopiei os estatutos da FLAC, a Frente de Libertação dos Apanhados da Cabeça. Andei a distribuí-los na porta do liceu. Escrevia comunicados. Lixei-me com a brincadeira! Passei a ser o Flac. Ou Flak. O Flak para aqui, o Flak para ali. Ficou.

E hoje: és politicamente ativo?

Não. Voto, interesso-me, mas não tenho atividades partidárias.

Mas calculo que te convidem para tocar como apoiante de ações de intervenção política. Vais?

Vou. Já apoiei, com a minha música, vários políticos. Como o Manuel Alegre, na sua candidatura à presidência, o António Costa, o João Ferreira para a Câmara de Lisboa. Dou a minha pequena contribuição. 

Somos um país com música a mais para gente a menos?

A ideia de música com base na estrela do rock ou estrela da pop está a acabar. Mas está a acabar como estão a acabar outras expressões artísticas. O cinema já não tem a força que tinha. Na escrita há cada vez mais edições de autor ainda agora estive em Londres e as livrarias têm um movimento incrível! O artista como ser superior, como ser especial está a desaparecer. Hoje há a net, há o streaming. Qualquer um, sem meios, sem promoção, cria visibilidade para si próprio, consegue chegar a milhões de pessoas em segundos. A realidade mudou.

Bem dizes que Os Tempos Estão a Mudar? Isso põe em risco a qualidade?

Não. Porque há mais liberdade. Deixou de haver tantas condicionantes. A liberdade criativa é sempre positiva. Torna as pessoas mais genuínas.

Consegues viver da música?

-… Neste momento… Lançar este disco dá-me mais despesa do que retorno.

Quanto custa fazer um CD?

Não é caro… Para aí um euro. Uma edição de 300 CD custa cerca de 300 euros.

Vende-los a quanto?

Esta edição nem é para vender. Fiz uma edição em vinil que, essa sim, foi para o mercado.

Qual o objetivo comercial?

Basicamente, pagar a edição.

Então, como te desenrascas?

Vou ganhando algum dinheiro com direitos de autor. Felizmente tive muitas músicas que continuam a ser ouvidas e tocadas. Depois há os concertos. E bandas sonoras. Vai aparecendo trabalho. E poupei algum nos bons tempos, quando se pagava bem. Dá para viver descansado. Muitas vezes dispenso os meus cachets para pagar às pessoas que trabalham comigo. Porque eles ficam à sombra dos êxitos que eu possa ter.