‘Não é o consumismo que torna as crianças mais felizes’

O que podemos fazer para que os miúdos sejam menos consumistas? A psicóloga educacional Sónia Rodrigues explica

É uma realidade transversal a tantas e tantas famílias com crianças nesta altura do ano. Todos querem mimar os mais pequenos e, passadas as festas, muitos miúdos têm mais presentes do que mãos e não conseguem sequer focar-se nem no significado do ato de dar nem sequer nos presentes em si, que muitas vezes acabam a ganhar pó, sem merecer qualquer atenção. Devemos, então, pedir para darem menos presentes aos miúdos? E se o pedido nunca é respeitado, que estratégias podemos usar para que refrear o consumismo? Sónia Rodrigues, psicóloga educacional há quase vinte anos e coordenadora da área social do Centro Cultural e Social de Santo António dos Cavaleiros (CECSSAC), explicou ao b,i. o que podemos fazer para que os miúdos sejam menos consumistas e deu algumas dicas para lidar com as montanhas de presentes. E fala ainda do outro lado da moeda, com o qual se depara todos os dias no CECSSAC. No centro, que tem várias respostas sociais – creche, pré-escolar, ação social, banco alimentar, a loja solidária e acompanhamento de idosos –, Sónia acompanha muitas crianças socioeconomicamente desfavorecidas e o desafio, nesta altura, vai exatamente no sentido contrário: dar a cada dos miúdos um presente personalizado, que vá ao encontro dos interesses de cada um.

Spoiler alert: se durante o ano cultiva o consumismo, não será nesta altura que consegue trazer novos valores para casa. E se está habituado a doar aquilo que em casa deitaria para o lixo, tenha sempre esta premissa em conta – se estiver estragado para si, também estará para os outros.

Todos vemos nesta altura do Natal uma correria às prateleiras. A culpa é dos pais, dos filhos ou não se pode falar em culpa?

Não se pode falar em culpa aqui, já que o consumismo é um comportamento que a sociedade os leva a tomar, tanto os pais como os filhos. Os pais, muitas vezes, promovem-no, os filhos também estão sob o constante apelo da publicidade. Mas parece-me importante tentarmos refrear o consumismo nesta época. As situações de muito stress nas famílias [nesta altura] acontecem também em parte por causa do consumismo. Antes tínhamos uns natais mais tranquilos, sem esta pressão do consumo, do comprar mais, muitas vezes comparando-nos ao pai dos amigos, de comprar o brinquedo mais ‘xpto’ – e tudo isto causa muita pressão em casa.

E quais são as estratégias que podemos usar para dizer a uma criança que não vale a pena pedir cinco presentes, que dois se calhar são suficientes?

Essa mensagem tem que ser passada no dia-a-dia e não apenas no Natal, porque se não a passamos todo o ano chegamos a esta altura e não conseguimos que a mensagem fique. Se eles consomem todo o ano, se os pais os habituam a comprar tudo o que querem sempre que querem, não é no Natal que vão fazer essa quebra. Tem que ser um trabalho contínuo. E mudar rotinas nesta época é muito mais difícil porque os apelos são muito maiores.

Quais são os seus conselhos então para fazer esta espécie de, digamos, ‘desmame’?

Há crianças muito mais consumistas do que outras, e há que aproveitar os momentos em que eles pedem [um presente ou um bem] para lhes explicar que não podem ter tudo e desviar-lhes a atenção para outras atividades que não partam do consumo. Atividades ao ar livre, passar tempo com os pais, mesmo as brincadeiras em casa que não impliquem o consumo de bens são sempre boas opções.

Há pais que conseguem ter esse tipo de comportamento e fazer atividades com os filhos mas, depois, nesta altura, veem todos os amigos e familiares a quererem, como é normal, dar presentes à criança. Os pais devem pedir à família para dar menos presentes aos filhos ou isto não faz sentido?

É um bocadinho complicado refrearmos essa vontade. O que os pais podem fazer é depois das crianças receberem os presentes escolherem dois ou três ou quatro, aquilo que for razoável para cada família, e guardarem os restantes. Por um lado, podem ir abrindo esses presentes ao longo do ano, por outro, podem escolher alguns presentes para doar. E é bom que as próprias crianças os doem a outros miúdos que necessitem.

E quando os pais fazem um apelo intenso aos familiares que não é respeitado, o que podem fazer?

Nesse caso, e tendo em conta que às vezes não é possível gerir os avós ou os familiares, há que gerir com as próprias crianças a situação e envolvê-las no processo. É exatamente combinar com as crianças que aqueles brinquedos todos não lhes fazem falta, e combinar com eles que podem escolher com quais querem ficar e que os restantes faz mais sentido darem.

E é fácil fazê-los aceitar isso?

Na minha casa sempre fiz isso. Imagine que uma uma criança recebe 15 brinquedos – desses 15, há sempre um preferido, um ao qual se agarram e com o qual passam a noite a brincar e distraem-se dos outros muito facilmente.

Esse será um sinal de que esse é o primeiro a guardar.

Exato, às vezes já nem querem abrir os outros. E são esses presentes que ficam de parte que podemos guardar, dizendo sempre que o vamos fazer e porquê. Com os meus filhos costumava tirar sempre esses brinquedos de parte e ao longo do ano ia dando. Muitos eles nem se lembravam que os tinham recebido, era como se os estivessem a receber pela primeira vez. Muitas vezes chegávamos ao Natal seguinte e ainda não lhes tinha dado todos os que tinha guardado. Nos aniversários também podemos usar a mesma estratégia.

Quando uma criança fica muito dececionada com um presente pode ser uma boa altura para falarmos de expectativas?

É muito importante ensiná-los a gerir as frustrações e essa é uma boa altura para trabalhar essas competências. Conseguimos fazê-lo conversando com as crianças e apresentando alternativas. Há que explicar não só que não temos tudo o que queremos, mas também que as pessoas dão aquilo que querem e podem dar, além do que gostam, mas que nunca pensam que podem prejudicar de alguma forma a quem estão a dar. É ir muito por aí. Mesmo que a criança não goste muito do presente devemos conversar com ela para agradecer à pessoa, porque é o ato de dar que está aqui em causa.

Há estratégias que possamos usar para as crianças valorizarem aquilo que estão a receber?

Dar menos! Começa muito por dar menos. Se uma criança recebe dez brinquedos não vai conseguir brincar com todos, não lhes vai dar atenção nem ter o mesmo interesse pelos dez brinquedos e se calhar, nesse cenário, nem vai ter interesse por nenhum. Por isso é preferível dar menos coisas, menos bens, mas dar, por exemplo, tempo, levá-los a uma atividade ou até oferecer-lhes uma saída a algum lado.

Falou aí do tempo e há uma situação de que se fala recorrentemente, que é a compensação. Muitas vezes os pais ou familiares usam os presentes para colmatar falhas que pensam que podem ter tido eventualmente ao longo do ano.

Essa situação é muito comum e também há outra que lhe podemos juntar: os pais dão por exemplo as tais dez prendas, ou o que for, e depois acham que a criança não liga ao presente. Isto também acontece porque não as ensinam a brincar, nem brincam com eles – dão-lhes a prenda e deixam-nos no espaço deles sozinhos. Isso também não é muito positivo, é importante que além de darmos o brinquedo, brincarmos com eles, ensinarmos a brincar. É o tal tempo que devemos ‘perder’.

Ensinar a brincar então é tão importante como o ato de dar, ou seja, há que dar também o tempo aliado?

Sim, sem dúvida. É tão importante uma coisa como a outra.

Faz sentido darmos brinquedos que os miúdos possam partilhar com outras pessoas ou nesta altura devemos optar por dar um presente personalizado e individual?

É muito importante a partilha, mas as crianças também podem partilhar o seu brinquedo de uso individual. Os jogos são bons exemplos de brinquedos para partilhar porque promovem o contacto com as outras pessoas e o não isolamento.

E dar livros a uma criança que não gosta de ler porque queremos muito que o faça vai funcionar?

Se uma criança não gosta mesmo de ler e não gosta mesmo de livros, há outras formas de a pôr a ler que não passa por lhe oferecer livros. Para já vem muito do exemplo em casa: se lá em casa ninguém lê, como os podemos depois obrigar? Por isso é importante, noutras alturas, os pais levarem um livro para casa, sentarem-se com os filhos e lerem. Mais uma vez, é o educar ao longo do ano.

Os miúdos estão muito expostos a publicidade nesta altura do ano. Será que faz sentido levá-los ao supermercado?

Se os pais não tiverem alternativa faz sentido! Mas também faz sentido para os fazer ver que temos uma lista de compras – e isso sim, é importante que levemos – e distinguir os bens essenciais, e que não podemos levar nós próprios também tudo o que é supérfluo. Nesta altura em que estão os supermercados cheios de brinquedos temos que explicar que não podemos levar uma coisa porque não temos depois dinheiro para o resto, além de que não precisamos dela. Não faz mal nenhum os miúdos irem para os corredores dos brinquedos desde que percebam que não levam um sempre que vão às comprar. Isso acontece especialmente agora, mas também todo o ano.

No seu trabalho na área social depara-se com o oposto. Como é gerir as expectativas das crianças com quem trabalha nesta altura do ano?

Temos, efetivamente, bastantes famílias que não têm como dar presentes aos filhos. As crianças percebem isso porque é uma realidade com a qual vivem diariamente. Mas tentamos dar algumas respostas. Uma das coisas que fazemos é uma reciclagem dos brinquedos usados que recebemos, vemos aqueles que estão em bom estado e nesta altura do ano oferecemo-los. Na semana passada, por exemplo, fizemos a Feira do Brinquedo onde as mães e familiares puderam ir buscar os brinquedos para oferecer agora no Natal aos filhos. Dentro daquilo que tínhamos para dar, levaram os que achavam que os filhos iam gostar. Temos também a entrega dos cabazes de Natal onde todas as crianças destas famílias recebem um brinquedo personalizado – este ano os cabazes vão englobar 90 crianças – e depois ao longo do ano também temos uma loja solidária onde as pessoas podem ir buscar os brinquedos e outros bens.

Trabalhando nesta área torna-se mais evidente, nesta altura do ano, que há os dois pesos e duas medidas da sociedade?

Acho que realmente não é o consumismo, e não é o dar muito, que torna as crianças mais felizes. Vejo isso muito nestas famílias: as crianças que têm menos quando recebem um presente ficam tão ou mais felizes do que as que recebem dez, brincam muito mais com eles e se calhar aproveitam muito mais.

A partir de que idade e como é que devemos mostrar às crianças mais favorecidas o outro lado da moeda da sociedade, que as torne mais conscientes de que o mundo que as rodeia não é um espelho dos anúncios que veem na televisão?

Em idades muito baixas o voluntariado propriamente dito será tanto um caminho, mas é importante passar desde cedo a ideia de que nem todos têm as mesmas necessidades, nem todos têm o mesmo que nós. Podemos pedir a uma criança para escolher as coisas com que já não brinca ou as roupas que já não usa para as dar, desde que estejam sempre em boas condições. E ir juntamente com elas entregar a uma instituição. Isso pode fazer-se desde muito cedo, a partir do momento em que eles começam a perceber.

 

Essa é uma realidade cada vez mais comum ou que ainda está um bocadinho longe do desejável?

Acho que cada vez é mais comum. Ao longo de todo o ano temos recebido roupa, tanto de criança como de adulto, assim como brinquedos.

Recebem famílias que façam essas doações?

Normalmente, os bens são deixados no nosso espaço. Não fazemos a doação direta até porque estamos num meio relativamente pequeno, num bairro onde as crianças se conhecem e pode ser constrangedor dar diretamente às outras famílias. Por exemplo, no caso dos cabazes a distribuição é feita de casa em casa com a equipa de voluntários que, habitualmente, já dá apoio aos alimentos solidários e à loja solidária, e que por isso já são conhecidos das pessoas. É importante que não haja uma invasão à privacidade das pessoas.

Há uma diferença entre a caridade e dar instrumentos às pessoas para terem uma vida melhor. Acha que as pessoas têm noção de que é preciso dignidade também para dar?

Nem sempre. Muitas vezes o que sentimos é que as pessoas usam, ou, neste caso, dão aquilo que não presta para se sentirem bem com elas próprias. O que temos de pensar é que aquilo que já não é bom para nós, que já não está em condições para nós, também não está em condições para os outros. Não devemos dar roupa estragada, brinquedos partidos. No fundo, é dar aquilo que gostaríamos de receber.

Acontece-vos no centro receberem coisas que não estão em condições para serem usadas por ninguém?

Infelizmente ainda acontece, sim.