João de Deus. A caminho do inferno

Oprah Winfrey, Naomi Campbell, Dilma Rousseff e Lula da Silva, entre tantos outros, compunham a carteira de clientes de João de Deus, o médium cuja fama extravasou as fronteiras brasileiras. O pano caiu: dez mulheres chegaram-se à frente e acusaram-no de abuso sexual. Depois da denúncia inicial, as vítimas já ultrapassaram as três centenas.

Casa Dom Inácio de Loyola, na cidade de Abadiânia, no estado de Goiás, fica próximo de uma ‘cachoeira’. Foi ali que, a cerca de 100 km de Brasília, o médium João Teixeira de Faria, conhecido mundialmente por João de Deus, resolveu fundar a casa onde exercia o seu chamamento, isto depois de ter recebido uma mensagem espiritual a indicar-lhe o local preciso para a construção.

No site do centro de atendimento ainda se podem consultar as regras, algumas bem específicas, para os visitantes. Afinal, ali acorre uma não tão pequena multidão em busca de tratamento espiritual: por semana, são cerca de cinco mil pessoas. Quem por lá entra deve vestir de branco e procurar uma fila específica para a sua condição. «As filas existentes na Casa de Dom Inácio são: fila de cirurgia; fila de primeira vez; fila de segunda vez; fila de revisão de cirurgia; fila das 8 horas; fila das 14 horas e fila do bye bye», lê-se.

Desde o passado dia 7 de dezembro que o tamanho das filas encurtou. Nesse dia, o programa Conversa com Bial, da Rede Globo, revelou que o médium terá abusado de dez mulheres. A holandesa Zahira Leeneke Maus, uma das vítimas, foi a única a dar a cara. A partir daí, o jornal Globo pegou na história e denunciou que não seriam 10, mas antes 13 as vítimas de uma das figuras mais influentes da vida social e até política do Brasil nas últimas décadas. Estava aberta a caixa de Pandora e, à boleia das primeiras dez corajosas, um número impressionante de mulheres afirmou ter sido vítima de abuso sexual por parte de João de Deus. Segundo o Ministério Público de Abadiânia, são mais de 330, pelo que a justiça brasileira se viu obrigada a criar uma espécie de task-force para lidar com o caso.

Na sexta-feira (dia 14 de dezembro), o tribunal de Abadiânia ordenou a prisão preventiva do médium de 75 anos. João de Deus fugiu durante algumas horas, enquanto os seus advogados se meteram em campo para negociar as condições da entrega. Entretanto, declarou-se inocente e visitou a sua propriedade, além de ter retirado 35 milhões de reais (cerca de 7.800 milhões de euros) das suas contas bancárias para, de acordo com os seus advogados, dar resposta às suas «necessidades».

Um dia depois, há precisamente uma semana, acabou por se entregar à Polícia Civil de Goiás e está desde então em prisão preventiva.

 

Acusações não são de agora

Não foi a primeira vez que o médium se viu a braços com a mesma acusação.  Em 2013, Camila Correia Ribeiro, então com 16 anos, contactou o médium e  foi vítima de abuso sexual à frente do pai. «[João] acariciou os seios, barriga, nádegas e virilha da menina», pode ler-se na ação do Ministério Público de Goiás. No entanto, a juíza considerou que a conduta do acusado foi «imoral, mas não caracteriza violação sexual». O processo foi arquivado, lembra a Veja Brasília.

Dalva Teixeira, a própria filha de João de Deus, juntou-se às mais de trezentas vítimas. Dalva, hoje com 49 anos, contou em entrevista à Veja,  que o pai foi um «monstro» que abusou sexualmente dela entre os 10 e os 14 anos e que, com essa idade, engravidou de um dos funcionários da casa Dom Inácio de Loyloca e foi espancada até abortar por isso.

Todas as acusações foram perentoriamente negadas por João de Deus e pelo advogado Alberto Toron, que afirmou que o médium «nega e recebe com indignação a existência dessas declarações». E Alberto Toran ainda tentou descredibilizar publicamente Zahira Leeneke Maus: «Essa holandesa, estou recebendo informações, com um dossiê, de que tem um passado nada recomendável, o que pode descredibilizar sua palavra. Era uma prostituta e tinha um passado de extorsão.»

 

De alfaiate a médium

Desde 1976 que João de Deus usava a Casa Dom Inácio de Loyola como centro de atendimento espiritual. Nascido em junho de 1942, em Cachoeira de Goiás, saiu da escola no segundo ano do ensino primário sem saber ler nem escrever. Em entrevistas, o médium contou que os seus dons começaram a manifestar-se aos nove anos e que, desde aí, nunca mais o abandonaram. Aos 16 anos tornou-se curandeiro espiritual e trabalhou por breves períodos como aprendiz de alfaiate, mineiro e cerâmico. Depois começou a viajar pelo Brasil, curando pessoas, até decidir fixar-se em Abadiânia em 1976. Fundou a Casa Dom Inácio de Loyola e os seus bens começaram a aumentar a par e passo com o aumento dos seguidores.

Além das consultas espirituais, o médium realizava, apoiado por 30 médicos, cirurgias espirituais, com os ‘pacientes’ a permanecerem na propriedade durante 24 horas para repouso. Para que João de Deus os ‘opere’, exige-lhes que abandonem a saúde convencional, depositando as suas vidas nas suas mãos. Os antigos Presidentes Dilma Rousseff e Lula da Silva eram presenças comuns, não esquecendo a apresentadora milionária Oprah Winfrey e a modelo Naomi Campbell.

Para lá dos famosos, com o fluxo de pacientes, veio também o boom económico numa pequena cidade com 17 mil habitantes. Os hotéis e pousadas da cidade beneficiaram do centro de atendimento e os negócios prosperaram – e João de Deus passou a ser consultado acerca dos mais variados assuntos sobre a cidade. Até agora.

*Com Ricardo Cabral Fernandes