O cheiro a pipocas acabadas de fazer e o algodão doce cor de rosa trazem memórias de infância aos mais velhos: os palhaços, os trapezistas, os malabaristas e os animais amestrados. No entanto, as primeiras notas da música dos Pirata das Caraíbas denunciam que não estamos perante um circo tradicional. Há Piratas no ar, um Homem-Aranha trapezista e um gorila mecânico, escondidos por detrás da tenda branca que se vê da A8, mesmo ao lado do LoureShopping. Pela primeira vez no Infantado, em Loures, o circo Luísa Cardinali é o reflexo da adaptação das artes circenses à modernidade.
As recentes polémicas em torno da utilização de animais no circo, e a lei aprovada este ano, estão a forçar as companhias de circo a mudar os espetáculos. Por exemplo, no circo Luísa Cardinali o maior ‘animal’ é agora um gorila mecânico com dez metros. «Substituímos os animais verdadeiros porque já sabíamos que havia problemas. Compramos este King Kong gigante na América – porque o filme estava na moda – e começámos a fazer como no México, em que muitos circos já têm animais robôs», explica Luísa Cardinali ao b,i.
Fotografia: Mafalda Gomes
Mas a proprietária afirma que a falta dos animais está a fazer diferença. «Este ano foi muito mau. Embora muita gente não queira animais, a maioria dos portugueses ainda quer», diz a proprietária. O espetáculo continua a ter dois números que incluem animais, mas não são selvagens: são cães que jogam futebol e gatos que fazem truques. Sónia Silva assume o papel de Catwoman e apresenta Titi, Luna e Lira, três gatos amestrados, que mostram ao público que são capazes de fazer «o que os leões fazem». «Algumas pessoas dizem ‘isso sim, animais domésticos’, outras dizem que circo sem animais não tem graça’. O povo divide-se», conta, lembrando que «a tradição do circo é os palhaços e os animais». Incentivando os animais com comida, os gatos vão apresentando os seus truques ao público.
A solução para evitar que os animais sejam maltratados nos circos é unânime entre os artistas: fiscalização. «Têm de ir ver se os animais estão bem ou mal», defende Sónia. «É como em todo o lado: há padres que são pedófilos, não vamos acabar com a Igreja; há pais que maltratam os filhos, não quer dizer que sejam todos. Existe em todas as áreas», acrescenta, reforçando que muitas informações partilhadas na internet são «pura mentira». «Acho que é pior a tourada, em que estão a sacrificar os animais e ainda têm o IVA a 6%. E facilitam-lhes a vida de todas as maneiras», critica.
Apesar de a lei só entrar totalmente em vigor daqui a seis anos, há municípios que já não aceitam os circos que apresentem números com animais selvagens. «Não vai ser daqui a seis anos, é já. O Estado deu aos presidentes das Câmaras o poder de decisão, então é agora, porque se vamos a uma terra e o presidente não deixa já não podemos trabalhar. Somos tantos circos, como é que vamos viver?», questiona Luísa. A proprietária usa o exemplo do primo – o famoso Victor Hugo Cardinali – que foi forçado a acabar os números que tinha com animais selvagens. «O meu primo já não trabalha com leões, mas agora não os vai matar. Tem de lhes dar comida até eles morrerem. Se fossem mal tratados agora matava-os e poupava dinheiro», afirma a proprietária sublinhando que Victor Hugo «dá melhor comer aos leões do que à família».
Nascida no seio do circo e a carregar no apelido Cardinali a tradição circense, Luísa Cardinali e o marido venderam o circo com animais no Irão há perto de um ano. «Tínhamos um circo aquático e íamos de país em país o espetáculo. Foi um sucesso», recorda. Tubarões, focas e pinguins eram a principal atração do espetáculo aquático que levaram além fronteiras. Agora, o King Kong e o Transformer – um carro que se transforma num robô gigante – dão nome ao espetáculo: Do cinema para o circo. «Transformamos os números em filmes», explica, referindo-se à escolha do guarda-roupa e das músicas que acompanham os artistas em palco. «Quando as pessoas veem o espetáculo gostam, mas antes ficam com dúvidas. Pensam que o King Kong é verdadeiro. Vê-se a mentalidade que as pessoas ainda têm, mas nós temos de as mudar».
Fotografia: Mafalda Gomes
«É pena o povo não aderir»
Luísa Cardinali e a sua companhia já correram os quatro cantos do mundo. Com o circo aquático fizeram sucesso em Portugal e passaram dois anos na Turquia. «É uma maravilha: trabalha-se todos os dias, o circo está sempre cheio. Não é como em Portugal que só trabalhamos três dias por semana».
O circo chegou a Loures a 6 de dezembro e estará com espetáculo em palco todas as sextas, sábados e domingos até dia 6 de janeiro, exceto no Natal, em que tem sessões extra no dia 25, 26 e 27. O preço dos bilhetes varia entre os oito euros (crianças) e os 14 (adultos). «O Cirque du Soleil não tem animais, o bilhete custa 80 euros e [o espetáculo no Meo Arena] já está esgotado. Porque é que as pessoas vão ali ajudar quem não é do nosso país e nós, que somos de cá, não nos ajudam? Se o povo nos ajudasse mais podíamos trazer grandes números. O problema é que as pessoas não vêm e, por não virem, nós não podemos contratar», explica Luísa.
Quando as pessoas lhe dizem que «o circo é caro», a dona não hesita em lembrar que o espetáculo não é «pôr um filme a rodar», tem «muita gente a trabalhar». Já para não falar dos custos associados aos licenciamentos e às infraestruturas necessárias para montar a tenda. «É pena o povo não aderir. Porque se as pessoas viessem podíamos ser o Cirque du Soleil, ideias nós temos muitas», remata.
Super-heróis disfarçados de artistas
Os artistas dão as boas-vindas ao público ainda antes de entrarem no palco. Maquilham-se e vestem-se nas suas casas – as rulotes estacionadas atrás da tenda -, aquecem o corpo e preparam-se para fazer voar a imaginação de crianças e adultos. O espetáculo começa com um número de acrobacia, em que Esmeralda Torralvo faz o turbilhão humano ao som do tal tema dos Piratas das Caraíbas. «Adaptamos os números como se fosse um bocadinho da história dos filmes, mas em circo», conta a artista, replicando a ideia de Luísa Cardinali.
Depois do números com os gatos, Sónia Silva deixa o fato de Catwoman e transforma-se em Xena, a Princesa Guerreira, para apresentar um número de equilibrismo com espadas. «As habilidades que tentamos fazer levam muitos anos [a alcançar]. Até já tive acidentes com espadas, ia ficando cega», conta a artista, logo dizendo que os acidentes não a farão desistir da vida circense. «Os acidentes acontecem. Se assim fosse, ninguém andava de carro», remata.
Pelo corredor que passa por baixo da plateias, vemos William Cardinali, um dos filhos de Luísa, vestido de Homem-Aranha. Depois de cumprimentar os espetadores, o jovem de 21 anos trepa as colunas de metal encarnando a personagem da Marvel. «Estamos a tentar acrescentar espetáculos diferentes, contemporâneos, a misturar um bocado para que o público comece a habituar-se como vai ser o circo nos próximos anos», explica. Malabarista e dançarino, William enche a tenda de música e mostra-se atendo às tendências: com um pequeno rádio, põe todas as crianças da plateia a cantar músicas como Mafiosa. «É o que está na moda», comenta entre risos.
«Comecei o espetáculo há 10 anos, tinha 11, e a minha mãe teve a ideia de me incluir», lembra. «Nascemos nisto e somos criados no circo. Logo desde pequenos começamos os nossos ensaios e é por isso que amamos tanto esta arte», reforça.
Entretanto, o palhaço Carlitos – que na realidade se chama Juan Carlos e tem 53 anos – prepara-se para roubar gargalhadas à plateia. Nasceu em Itália, no seio de um circo, e foi trapezista durante a maior parte da sua vida. Aos 46 anos, a idade obrigou-o a deixar as alturas e passou a colocar definitivamente o nariz vermelho. «Ser palhaço é ser eu mesmo, é algo que me é natural», conta Juan Carlos, lembrando que foi também saltador e malabarista. «O meu número agora é mais mímica cómica do que palhaço. É sempre diferente [entre espetáculos] porque nunca sei qual vai ser a reação que as pessoas vão ter às minhas brincadeiras», explica.
Uma nova geração de artistas
A grande maioria dos artistas que enchem o palco são oriundos de famílias circenses. Luísa Cardinali é já da segunda geração dos artistas de circo Cardinali. «A nossa família é muito antiga. Os nossos pais é que eram italianos. A primeira geração já faleceu, ficou a segunda geração que sou eu, o Victor Hugo, entre outros. A terceira geração já serão os filhos dele, os meus, etc.».
Apesar muitos artistas optarem por explorar outros meios e outros países, a passagem entre espetáculos, não é mal vista. «Há pessoas que pensam que é traição, mas não é. Nós temos de ser bem-vindos em qualquer casa de circo porque há momentos em que precisamos de sair de nossa casa e ir para outra trabalhar», explica William. Para o jovem, é assim que se pode inovar os espetáculos, vendo o que se faz fora de Portugal e trazendo novos números para o país. «Estive a trabalhar em França – cheguei há pouco tempo – e tenho várias noções da cultura de lá. Agora é preciso saber se o público português vai aceitar essas ideias», acrescenta.
E mesmo quem não nasce no meio, também pode vir a ter o ‘bichinho’ do circo. «Tenho amigos meus que não trabalham no circo e que me perguntam se é possível entrar», afirma William. «Claro que é possível desde que estejam treinados ou que frequentem uma escola de circo, onde possam treinar algo para ser integrado no espetáculo. São sempre bem-vindos», reforça.
Inês Claro e Flávio Peixoto, de 18 e 17 anos, são disso exemplo. Juntaram-se ao circo Luísa Cardinali há perto de dois meses, depois de terem recebido o convite de William. Fizeram o curso de artes circenses no Chapitô – Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espetáculo e, atualmente, fazem par num número de dança contemporânea e ginástica. «Sempre adorei circo» afirma Inês que começou a sua carreira em competições de dança contemporânea.
Desde que se juntaram, Inês e Flávio já percorreram várias cidades. «Atuamos sexta, sábado e domingo. Ao domingo à tarde, depois do nosso último espetáculo, desmontamos durante a noite e mudamo-nos na segunda-feira para outra cidade», explica Inês. «É muito lindo. Mas depois há aqueles dias de chuva e frio em que nós sofremos muito», acrescenta.
A carreira no circo é um sonho de ambos. Enquanto Inês tem já um número a solo de tecido aéreo, que é «baseado em força e flexibilidade», Flávio está já a treinar para o seu número de trapezista. «Já tenho andando a treinar há uns três meses. Com trabalho conseguimos chegar lá. Mas quando se começa desde pequeno é sempre mais fácil em termos de flexibilidade. Tenha a idade que tiver é sempre possível, é preciso é um pouco de esforço», explica o jovem.
Agora, é hora de voltar à roulotte. Troca-se a roupa, volta-se à arena. Penduram-se nos céus da tenda. As palmas caem. Hoje, há mais.