Pedro Abrunhosa. ‘O papel da arte é transformar a dor em poesia’

Da reflexão interior declarada em Espiritual para a preocupação universal, Pedro Abrunhosa senta-se no primeiro lugar do top natalício de álbuns mas o champagne vai ter de ficar para mais tarde porque os muros se ergueram e o ódio está numa relação demasiado séria com a sociedade ocidental

No hotel onde fica sempre que vem a Lisboa, nem se nota que a noite anterior foi de estreia do novo álbum de Pedro Abrunhosa. Espiritual foi apresentado de fio a pavio mas os sinais de cansaço são inexistentes. Pelo contrário, a maratona promocional dá-lhe gozo. O gozo de quem escreve canções cerebralmente com uma intenção. 

A música nasce do pensamento e da observação do mundo. Da reflexão interior declarada em Espiritual para a preocupação universal, Pedro Abrunhosa senta-se no primeiro lugar do top natalício de álbuns mas o champagne vai ter de ficar para mais tarde porque os muros se ergueram e o ódio está numa relação demasiado séria com a sociedade ocidental. Às canções, o lugar da salvação à mesa. 

 

Todos os álbuns se intitulam com uma só palavra. São guias?

São. São uma entidade ampla. Palavras com uma leitura ampla em que a mesma palavra tem significados diferentes, dependendo do recetor e do instante em que a recebe. Viagens tem uma leitura múltipla. Trips, a viagem pode ser interior…A viagem é um conceito de transumância. Tempo, o tempo cronológico…Isto é a leitura mais linear. Todos os discos representam uma vontade, em primeiro lugar, de arranjar uma palavra que os envolva debaixo de uma auréola sobre a qual trabalhe. Quando faço o Silêncio (1999), depois da quíntupla platina do Viagens (1994) e do Tempo (1996), tive um conflito comigo. De quem vem da contemporânea, da clássica e do jazz, para uma coisa feérica. Dei-me muito mal. Sei que cumpri mas interiormente, como dizem os Talking Heads, this is not my life. Sempre tentei (manter) essa distância para o feérico. E o Silêncio corresponde a esse espírito de rutura. À altura, foi um flop. Vendeu 50 e tal mil unidades. Foi «só» platina mais meia mas para os padrões que eu trazia, falhou, mas interiormente é uma busca pelo silêncio. O disco é tudo menos silencioso, aliás é muito agressivo – o mote é: silêncio para ouvir alto. Um silêncio de zanga e de desconforto com o status do star system. Espiritual é um contraciclo com o tempo. Nós vivemos tudo menos tempos espirituais. E há a necessidade de busca pelo conhecimento e pela palavra, a palavra que resgata. O Sartre dizia que o que resgata a humanidade ao túmulo da efemeridade é a palavra. O que fica escrito, escrito está. E o que está escrito, à sua maneira é eterno. A palavra Espiritual devolve-me o sentido de ligação artística profunda entre escrever canções e o público. A ligação com as pessoas dá-se através da palavra. 

 

A espiritualidade é interior. O contraciclo vem da sociedade viver de fora para dentro?

Eu acho que a sociedade passou a viver de fora para fora que ainda é pior. Não é uma crítica aos tempos porque sempre foi assim. Pode mudar-se os nomes às coisas mas as coisas não mudam por se mudar o nome. Pode aparentar-se mais mas nunca seremos mais do que o que somos e não somos o que temos. Com esta frivolidade louca da revolução tecnológica do Séc. XXI, das redes sociais, a voracidade, a efemeridade e a fugacidade do objeto banaliza tudo. Aquilo que as pessoas colocam nas redes sociais são coisas aspiracionais. Ou então são frases, chavões ou citações do Oscar Wilde e do Shakespeare que eles nunca disseram. Fake news até nas citações. Esse de fora para fora, se se fizer um retrato da contemporaneidade através das redes sociais, as pessoas comunicam demasiado superficialmente. As unhas de gel, as tatuagens, as férias no Sri Lanka… ao ocuparem aquele espaço, estão a competir com o Lobo Antunes. Como o bife do lombo compete no estômago com a Coca Cola. É o mesmo espaço! Onde é que isso se reflete? No fecho de livrarias. No «desaparecimento» da literatura. O que é que há agora nas montras? Livros de autoajuda, de cozinha, de viagens. Aquilo que o Steiner dizia: os grandes indicadores do apogeu da decadência do ocidente. A entronização das estrelas pop. Qual é o problema disso? É que tira a atenção do fundamental. Que música faz? Isso é que me interessa! O Pedro Mexia dizia: «Porque o que importa não é como se ama, mas conhecer restaurantes e ser muito bom na cama». Sei que estou em contraciclo mas prefiro o risco a ser igual. Vi um documentário sobre a história da música. Na pop dos anos 80 havia coisas fantásticas como o Prince ou o Michael Jackson, mas depois havia grupos de que nem sei o nome, e ainda bem. Coisas como os Europe que as estações sancionaram. Como é que é possível?! E havia as corridas de fundo que têm a ver com aquilo que é, para mim, o mais importante na música que é a escrita. E quem sobrevive? O Bowie e o Springsteen.

 

É assim que se vê, como um maratonista?

Sim. Repara, esta historia não começa com o Viagens. O grande empresário não começa quando fatura o seu primeiro milhão. Começa quando investe o seu primeiro euro. Inscrever-me no Conservatório já foi uma decisão a la longue. Desisti de Engenharia Química. Depois o jazz, a clássica, ter estudado com o Jorge Peixinho, um dos momentos axiomáticos da minha vida. Só quem esteve lá e viveu a música eletroacústica como a vivi nos anos 70 sabe. Eram aulas de grande densidade das quais tenho saudades. Estivemos um ano a analisar a ‘op. 10’ de Webern. São vinte páginas, é como analisar Thomas Mann. E isso para quê? Agora percebo. Era um alicerce brutal para o meu processo de pensamento. Não faço nada do que o Webern fazia mas dá consistência, destino e rumo. E aprendi a não ter pressa. A minha corrida de fundo começou aí, não foi quando fiz o Viagens. Aí já tinha muita estrada e muito palco. Já tinha formado a Banda de Bolso, os Magrinhos e Feios e a Máquina do Som. Deu-me uma estaleca enorme e aos 33 anos, já bastante velho para os parâmetros atuais e da época, chego ao estrelato. Foi quando senti que estava pronto. 

 

O ter chegado tarde ao estrelato trouxe uma capacidade de resistência maior?

Acho que sim. Tudo o que fiz para trás foi muito importante porque as dificuldades de um músico na contemporânea são tão grandes, tão grandes – fazes 400 quilómetros e tens cinco pessoas no público – que põe tudo em perspetiva. Para quem toca contrabaixo, a transição para o jazz é óbvia. Tudo aquilo foi muito natural. E aos 33 anos ter passado por tudo o que passei, até com o próprio disco, que foi rejeitado e achincalhado pelas editoras, dá-te outra calma. Continuei a ser o mesmo que estudou a ‘op. 10’ do Webern. Neste universo só não te esvais, tipo pavio, pela escrita. Felizmente, os concertos continuam a ser muito físicos de três horas e tal. Cuido de mim e estou ativo fisicamente. Mas vai haver um dia em que os concertos vão ser só as canções. E já são. Faço versões acústicas de guitarra e voz, até do ‘Não Posso +’, em que ali se vê o que a canção vale. Um dia dispo as canções e vou com elas para cima de palco. A autoria é que te dá a longevidade, a performance e interpretação tem sempre os dias contados. Muita da música de hoje é música de abdominais. Música de ver. Eu até gosto de ver mas sem som. Não há uma carreira sem canções.

 

O conflito dá-se entre o músico que vem da contemporânea e toca para cinco pessoas e a estrela pop nacional?

Sim, claro. Não é um conflito entre os dois músicos, é entre as duas pessoas que estão por trás dos músicos. É entre o querer o recato, e eu sempre fui muito perentório na minha vida particular -, os óculos escuros também são isso – de manter a minha sanidade mental fora do sistema. De ter uma vida! A nossa vida é mais importante que a nossa carreira. Eu sempre me dei bem muito bem com os livros. Gosto de aprender, gosto do difícil, e o Espiritual é um exemplo claro disso. E de repente, não é que tenha cedido à tentação mas andei lá perto. As festas, as revistas cor-de-rosa…Sempre me dei muito mal com isso. Antes disso, já era muito pouco sociável. Tinha um bar no Porto enquanto dava aulas de dia, que era um bom investimento e me ajudou a pagar os discos. As pessoas vinham ter comigo e eu ficava no meu canto. Queria silêncio, chegar a casa e ler. Nunca contei isto mas a seguir ao sucesso do Viagens, na passagem de ano de 94 para 95 tive uma depressão brutal, ao ponto de me ter retirado por completo por causa desse conflito interior. A minha vida profissional não podia ditar o que sou. Gosto de estar sozinho comigo e com os meus. Não gosto que me imponham pessoas, de me ouvir respirar, da natureza e de ler. E aquilo não me estava a dar oportunidade de ser nada disso que sou. Fui para fora, aluguei uma casa para passar o ano sozinho e mesmo assim, descobriram-me e convidaram-me para uma passagem de ano. E eu não queria. Acabei por passar o ano num campo de golfe com pessoas que não conhecia. Nem retirado era fácil. Que a música cumpra o seu papel, tudo bem. Que o homem tenha de andar atrás da música… não tenho de ser omnipresente.

 

Como é que se contraria?

Primeiro joga-se o jogo. Ele está lá para ser jogado. Atiraste-te para o jogo, não te podes negar. Tem é que se pôr regras, essa é a questão. O jogo não te pode devorar. O ir passar férias não sei para onde, esse jogo nunca joguei embora me tenham tentado impingir. Esta historia ainda está para ser feita mas as pressões que eu sofri para ir a programas que não queria… havia um que passava ao domingo a que nunca fui porque achava que era vácuo. Sofri chantagens, pressão e represálias. Mas estas são as minhas regras. Quem é que acaba por ganhar? O maratonista. Na semana seguinte, a mesma cadeia de televisão convidou-me para ir comentar a atualidade política com a saudosa Margarida Marante. Fiz três vezes esse programa, na série em que foram Cunhal, Soares e Cavaco. Acho que esse é o papel do autor. 

 

Há dois momentos sensíveis nessa época. Um quando um concerto no Ondaparque precede o bloqueio da Ponte 25 de Abril em 1994 e no ano seguinte quando se acorrenta ao Coliseu do Porto em protesto contra a tomada da sala pela IURD. Em entrevistas recentes, tem referido que esse papel mobilizador deve ser assumido por outras pessoas. Mantém essa posição ou questões como a dos coletes amarelos fazem-no repensar?

O concerto da Ponte, só para repor a verdade histórica, estava marcado com muita antecedência. E o Governo muda a lei para se pagar a ponte. Do Coliseu foi diferente. Foi uma atitude manifesta de vontade de proteger o património da cidade. E na altura não havia redes sociais. E o magma de gente que se aglomerou era gente genuinamente descontente. Não havia «paninhos quentes». Como é que se convocavam as pessoas? Alguém tinha de dar a cara. Era preciso estar lá. As televisões vieram e começaram a transmitir em direto. E aquilo cresceu, cresceu. Hoje em dia não. Com tudo o que têm de bom e de mau, as redes sociais conseguem aglomerar pessoas. Aliás, creio que a questão dos coletes amarelos está a ser altamente empolada e custa-me entender. Os movimentos acéfalos têm uma agenda muito própria, porque é a convergência de agendas subterrâneas. Todos os meses me fazem essa pergunta: «Há uma ruína em risco. Não te queres acorrentar?». Mas porquê, não há lá cidadãos? Como aqui em Lisboa, com o caso do Adamastor. É preciso que as pessoas tomem o lugar da cidadania e se manifestem. Vivemos uma altura extremamente preocupante em que profissões como o jornalismo estão em risco sério. Nós, Ocidente não ditatorial, habituamo-nos a que a informação chegue verificada. O jornalismo tranquiliza, assegura a democracia. E de repente, há um bypass ao jornalismo para fazer uma ligação direta altamente perigosa que acabou por eleger em vários países do mundo, pessoas que não têm uma única ideia. O discurso «tweetário» funciona bem porque na época do ódio ganha quem tem um megafone maior. As pessoas acreditam em tudo nas redes sociais. Repara que a grande guerra do Trump, uma coisa emblemática dos tempos que correm, e em linha com a primeira campanha do Hitler na Alemanha em que o Goebbels destrói toda a informação não vinculada aos tweets da época deles, é declarar os media inimigos do público. É chocante para a democracia e preocupante porque pode criar raízes. A cidadania tem de ser ativa e atenta mas rigorosa. Compete-nos estar atentos. Não existem 120 milhões de fascistas no Brasil, existem pessoas descontentes. Que é aquilo que faz com que não haja uma extrema-direita assim tão forte em Portugal. Felizmente, há um Governo que cumpre e se preocupou em diminuir o fosso. E uma imprensa.

 

Os extremos refletem um tempo de falta de referências, de vazio de pensadores?

Pois é, mas eles estão lá e existem. Eu sou um positivo e acredito na bondade da classe política para servir a coisa pública. Dito isto, um dos grandes rastilhos do populismo tem sido o silêncio e a conivência de alguma classe política na defesa dos seus únicos interesses pessoais. E a promiscuidade entre política e negócios. Isso faz com que o cidadão, não em Lisboa ou no Porto porque é mais informado, mas o que está no centro do país, esteja farto disto. E aparece alguém e diz: «Eu resolvo isto. Exterminando». Isto colhe. Portugal teve 48 anos de Salazar com a ajuda de muitos portugueses e desta autoridade serôdia. Esse rastilho acende. As pessoas que usaram os cargos para enriquecer são muito responsáveis. 

 

O ‘Amor em Tempo de Muros’ (single de Espiritual com a mexicana Lila Downs) é uma reação às barreira e divisões? 

É a reação possível. A Lila Downs dizia-me de uma maneira muito bonita que ficava contente por haver quem estivesse atento àquela realidade de uma forma poética. É possível transformar a dor em poesia. O papel da arte é esse. Não é tanto o do ‘Talvez Foder’ que é mais fazer tiro ao alvo. A arte é a metáfora da vida. É abraçar algumas coisas para as tornar menos duras. E suportáveis para nós. Escrevi essa canção há dois anos quando ouço dizer que o Trump vai construir o muro. Pensei que era uma anedota. Quando percebi que não, senti a necessidade de escrever uma canção sobre amor e muros. 

 

Como foi possível ter no disco não só a Lila Downs mas a Carla Bruni e a Lucinda Williams, além do Ney Matogrosso e da Ana Moura? 

Gosto de ouvir minhas canções cantadas por pessoas que cantam bem. Com alma. Propus ao [João] Bessa (técnico) ficar só com a voz da Lucinda Williams (’Se tens de partir não me contes – Hold Me’) e com a Lila Downs em castelhano. Foi uma pena mas um dia talvez faça isso. Enquanto aluno de Conservatório, éramos treinados para escolher os timbres. Como o pintor escolhe a cor. O timbre é uma cor. A da Carla Bruni (’Balada Descendente’) só podia ser a Carla Bruni. Ou a Jane Birkin se ela ainda cantasse. A Lucinda Williams era uma heroína para mim. Os convites foram feitos e as respostas positivas (sorri). Já tinha feito isso, com toda a lata, com o Maceo [Parker, produtor de Viagens e músico que tocava com Prince]. E ele sentiu uma afinidade pela música. Estava em casa. Neste caso, foi necessário explicar-lhes. Enviei-lhes a minha versão. E elas perceberam o que estava em causa. 

 

Politicamente, sente-se próximo de algum partido ou apenas de causas?

Sempre fui apartidário mas sou ideológico. O Platão dividia o mundo das sombras, das coisas, das pessoas e das ideias. E acima destes há o mundo da bondade, que é transversal. Não tem partido, cor ou cheiro. Alguns chamam-lhe Deus. É desse conceito de bondade que nasce a ética. A ética é uma forma interior de auto-julgamento, de não impor a prática do mal sobre os outros. Sem medo do castigo. No caso da política nacional, é o mesmo postulado. Aliás, a política nasce da ética. Não vejo porque é que hei de estar num partido se os partidos promoverem um comportamento ético para com os cidadãos. Para mim, a consequência sobre o cidadão é o que me importa. E acredito na bondade.

 

É por isso que aprecia tanto Marcelo Rebelo de Sousa?

Sim, gosto do Marcelo. Acho-o genuíno. Não votei nele, e ele sabe. Sou muito amigo dele, e ele sabe. Acho que ele faz toda a diferença, sobretudo a seguir ao cataclismo presidencial que tivemos. Este Presidente impõe uma nova atitude ética para a própria presidência. 

 

Muito antes de o escândalo Weinstein ter rebentado em Hollywood e originado o movimento #MeToo foi acusado de algo semelhante. Acabou por vencer o processo em tribunal. Como observa esta questão?

No meu caso, foi uma coisa inexistente. E a única pessoa a emergir foi condenada. A violência doméstica é um problema muito sério e eu já vi ajustes de contas no caso do #MeToo. É preciso responsabilizar a utilização das redes sociais. E acho que as pessoas também já concluíram que as questões se resolvem no local próprio: o tribunal. As questões precisam de interlocutores, não podem ser etéreas. São absolutamente condenáveis os comportamentos não éticos. A internet tem consequências jurídicas, é preciso é descobrir os autores. É para isso que servem os IPs. A Internet é um meio incrível de transmissão de conhecimento mas tem sido também um meio doentio de révanches pessoais. 

 

O ‘Viagens’ parece que foi anteontem mas o Pedro já tem 58 anos. No passar do tempo, há coisas que ou faz agora ou já não fará?

Sim. Quando estou perante milhares de pessoas, só há uma forma de galvanizar. A força. Essa força é fisicalidade. Desde que o homem é homem, a fisicalidade tende a diminuir. Enquanto tiver energia, o espetáculo será energético. Nesse aspeto, preocupa-me quanto tempo mais terei energia para dar concertos de três horas a saltar e a saltar. Os espetáculos sempre foram assim, desde 93. Se não for agora, aos 70 não quero estar a fazer figuras ridículas. Farei de outra forma. Divido os espetáculos de maneira a gerir o desgaste. Há uma hora de ação e depois é possível gerir o espetáculo para baixo mas mesmo assim é preciso estar em forma. A questão física preocupa-me. Envelhecer faz parte do processo e encarar o fim é uma atitude filosófica perante a vida. O mais importante é vivê-la mas para se viver, é preciso fazer. Penso que é o Dylan que diz: «if you do something too many times it might become your life». Não podemos é ficar inativos à espera que os outros façam. Fazer para mim é fazer o difícil. É fazer… o que ainda não foi feito. Estou a caminhar para uma fase em que ouço as minhas canções mais vazias e apetece-me ir para cima do palco com um piano. Aliás, já o faço. Há uma parte do espetáculo em que vou para o piano, em sítios mirabolantes, tocar músicas profundas. E, de repente, 40 mil pessoas estão em silêncio. E durante vinte minutos há um momento de contemplação, quase Epifânio. Foi num desses momentos, em que toco muito baixinho com a minha voz de barítono, que decidi chamar Espiritual ao disco. 

 

Cada noite é um exorcismo da dor e uma salvação?

É. É um momento de grande solidão, onde te reencontras com a música. E é um prazer imenso. Nos Comité Caviar, somos entre os 9 e os 12, e há momentos de musicalidade em que ouço a ‘Op. 10’ do Webern a entrar pela esquerda, e o Miles Davis a entrar pela direita. E toda a história da canção desde o (Serge) Reggiani, ao Fausto, ao Zeca (Afonso), ao (Jorge) Palma e à música negra que ouvia desde miúdo, converge em música. E penso: foi para isto que andei esta estrada toda. [O palco] é um sítio de salvação literal. Eu sei que estive doente mas não me lembro de ter estado, de tal maneira os concertos são redentores.