Esta frase, curiosa, com que terminamos o ano, foi fotografada pela Francisca em Entrecampos, e diz: «Sou um homem / um poeta / uma máquina de passar vidro colorido». Trata-se do início do poema «Autobiografia» de Mário Cesariny, e chama a atenção pelo seu conteúdo invulgar.
Não é a primeira vez que a poesia surge pintada numa parede e a sua presença embeleza o dia de quem passa. Mas estes versos são pungentes. O que é uma «máquina de passar vidro colorido»? O que é um homem ser uma máquina, ou sentir-se como tal?
Creio que todos nós, por vezes, nos sentimos como máquinas, como autómatos que repetem as mesmas funções, sem nos questionarmos sobre o que fazemos e o que sentimos. Andamos tão ocupados a realizar tarefas, a percorrer caminhos, a desempenhar papéis, que, quando paramos para pensar, chegamos à conclusão de que nada disso faz sentido, de que a vida deveria ser mais sentida, mais vivida. Aí, então, quando tomamos essa consciência, procuramos mudar e dar maior importância ao que vivemos e ao que desejamos. Há quem altere a sua vida e passe a vivê-la com mais intensidade, mas há também quem se sinta desesperado por não conseguir encontrar um rumo e caia num vazio que parece impossível preencher. Há, ainda, quem se questione, tente recolocar-se e, durante algum tempo, faça um esforço para se sentir mais consciente de tudo o que faz, mas acabe por ser engolido pela vertigem voraz que tudo consome e tudo aniquila, e regresse às mesmas rotinas apaziguadoras que nos tranquilizam e nos dão a segurança de caminhar por rumos seguros. Porém, a vida é mesmo um pântano inseguro, que nos prende e nos arrasta, que nos faz percorrer caminhos mais percorridos, ruas e vielas sem sentido, mas que são, para nós, confortáveis, como roupas que de tão usadas se moldaram ao nosso corpo e se confundem connosco.
Diz, ainda, Cesariny no mesmo poema: «os dias e as noites deste século têm gritado tanto no / meu peito que / existe nele uma árvore miraculada». Só, confuso, calado, são os dias e as noites que gritam, e no peito vai-se enraizando, cada vez mais fundo, uma árvore que, só por milagre, sobrevive e se torna cada vez mais forte e mais sólida; uma árvore que guarda as nossas memórias mais recônditas, as recordações do que, ao longo dos anos, vamos sentindo e calando.
Em jeito de balanço do ano que acaba, saibamos que viver é, pois, ir andando, mesmo quando não se sabe para onde, nem porquê, nem como. Viver é tentar dar sentido ao que fazemos, é procurar encontrar respostas em nós e nos outros, e no mundo que nos rodeia.
Como diz Isabel Rio Novo, em A Febre das Almas Sensíveis: «Há momentos assim, simples e luminosos. Com o passar do tempo, as experiências da vida, as desilusões que vamos sofrendo, aprendemos a reconhecê-los e a valorizá-los». São esses momentos luminosos que dão sentido à vida, mesmo quando deixamos para trás o coração, pendurado em algum estendal…
Maria Eugénia Leitão