O Funchal deixou de ser um cadáver adiado, atirado para o seu triste cemitério ali para o Cais da Matinha, comprado em hasta pública por um grupo britânico, Signature Living, por 3.910 milhões de euros. A barra do Tejo que o viu entrar, imponente e soberano, no dia 19 de outubro de 1961, dir-lhe-á adeus.
Ao contrário de muitos outros paquetes da altura, o Funchal não veio destinado às carreiras de África e sim ao transporte de passageiros entre o continente e as ilhas adjacentes. Construído em Elsinore, na Dinamarca, cidade palco do Hamlet de William Shakespeare, era propriedade da Empresa Insulana de Navegação.
Vivera-se uma fase de grande investimento na frota de navios mercantes e de passageiros, com estes a atingirem mais de vinte unidades. A velha tradição marítima lusitana vira surgirem o Império, o Niassa, o Angola, o Uíge, o Angra do Heroísmo, o Amélia de Mello, o Funchal, o Vera Cruz, o Santa Maria, o Príncipe Perfeito… Palácios ondulantes que motivavam opúsculos plenos de orgulho e discursos magnificentes. Perdera-se definitivamente a Índia, mas ainda havia um resto de império, do Minho a Timor.
No final do Verão de 1967, subi ao Funchal na Rocha do Conde de Óbidos com destino ao Funchal e, depois, a Santa Cruz, onde o meu pai tinha sido colocado. O seu casco negro era imponente, erguido das águas, a estrutura com 154,60 metros de comprimento e 6.50 de calado resfolegava graças ao poder dos seus 10.000 BHP de potência. Tinha pouca consciência da história que se desenrolava à minha frente à medida que, Atlântico adentro, ia enjoando ao sabor do mar. O navio em que viajei fazia a ligação marítima regular entre Lisboa e os arquipélago da Madeira, dos Açores e das Canárias. Duas viagens mensais consecutivas: Lisboa-Funchal-Tenerife-Funchal-Lisboa, seguida de uma entre Lisboa e Ponta Delgada, via Funchal. Os funcionários do Estado eram passageiros frequentes.
Em 1972, foi pela primeira vez ao Brasil. Viagem marcante: transportou os restos mortais de D. Pedro IV (I do Brasil) devolvidos à terra à qual deu independência precisamente 150 anos depois do Grito do Ipiranga. O presidente da República, Américo Tomás, ia elegantemente a bordo, fazendo guarda de honra às ínclitas ossadas.
Diga-se que o Funchal não tinha o porte gigantesco dos seus companheiros Infante Dom Henrique e Príncipe Perfeito. Não ia, inicialmente, para lá dos 400 passageiros – 80 de 1ª Classe, 156 de turística A e 164 de turística B, além de 170 tripulantes – embora depois essa capacidade tenha sido expandida, mas também não deixava de ser uma nave de grande beleza. Viria a sofrer profundas remodelações de forma a transformá-lo num navio de cruzeiros, com o seu lindíssimo e convidativo Convés Promenade. A pouco e pouco, abandonou a parceria com o outro transportador da companhia, o Angra do Heroísmo. As visitas às Ilhas Adjacentes, como lhes chamavam, rarearam. Havia, na sua frente, outros destinos, sobretudo do norte da Europa, como Dover ou Zeebruque, mas também do norte de África, como Ceuta ou Casablanca. Foi por aí que viajou, recebendo clientes estrangeiros, multiplicando-se em excursões que tinham uma média de duração de quinze dias.
O tempo passou, inclemente como só ele sabe ser. O advento das viagens aéreas, agora mais económicas e confortáveis, desviou passageiros do mar para o céu. Os grandes navios perderam a sua importância como meios de transporte e transformaram-se em locais de férias flutuantes.
Em 1975, o Funchal estava inativo. Já era propriedade da Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos. Ia sendo fretado, aqui e ali. A sua imagem elegante foi deixando as vagas para se habituar às docas. Logo ele que quisera negar-se à preguiça de ter cais.