É de merecer um «Hip! Hip! Hip! Hurrah!», esta novidade de termos um Sporting-FC Porto à tarde, a horas que fazem lembrar o futebol da infância dos cinquentões como eu. Hoje mesmo, em Alvalade, a contar para a 17.ª Jornada de um campeonato que parece cada vez mais entornado para o lado dos portistas tantos e tão destrutivos têm sido os tiros dados pelos seus adversários nos próprios pés.
Curiosamente, o primeiro encontro entre Sporting e FC Porto disputado em Lisboa para o campeonato, decidiu o título. A favor dos portistas. Já veremos como e em que circunstâncias. Para já, sublinhe-se a realidade posta em campo nesse domingo, 12 de maio de 1935. Os leões estavam obrigados a ganhar para alcançarem o adversário no primeiro posto. E, se esse fosse o resultado, ainda teria de criar uma diferença de golos suficiente para ultrapassar a derrota da primeira volta no Estádio do Lima. Tarefa árdua, sem dúvida.
Estádio do Lumiar, 16 horas. Última jornada.
Havia quem estranhasse o campo escolhido. Afinal, o estádio do Sporting era o Campo Grande: «Não compreendemos a razão por que a direção dos leões preferiu abandonar a vantagem do seu campo. Ali, no Campo Grande, com a bandeira leonina à entrada, é que o desafio se deveria realizar. Mas o fator económico, ao que parece, sobrelevou aquele que o Sporting tinha, sob o aspeto desportivo, no campeonato. A direção do Sporting joga uma cartada. Cartada que pode, afinal, sair-lhe cara. Se o ‘team’ ganhar por margem suficiente – tudo passará. Em caso contrário, não faltará depois o arrependimento, que será tardio».
Sábia reflexão.
Até porque, segundo os ‘mentideros’ das redações dos jornais lisboetas, o campeão do norte vogava numa maré de inesgotável otimismo, pleno de moral e decidido a não se deixar suplantar.
A questão dos golos também era abordada de forma reflexiva: «Torna-se necessário, para atingir esse fim, que os leões se superem a si próprios jogando com todos os seus recursos e com todo o coração. A linha da frente terá a animá-la a energia e coragem de Soeiro que deve travar rija peleja com Avelino, defesa com características às do fogoso avançado-centro internacional. Portanto, se a defesa leonina chegar para dispersar os esforços duma avançada que tem uma asa composta por Pinga e Nunes, tudo será possível».
Sabemos que não foi. É altura de ir à procura dos pormenores.
Logo pela manhã
Centenas e centenas de adeptos portistas chegaram à capital de automóvel ou de comboio. Manhã cedo já era possível vê-los pelo centro da cidade agitando as suas bandeirinhas azuis e brancas e trazendo orgulhosamente amarrados aos pescoços os seus cachecóis de tons vivos.
Os dirigentes do Sporting tinham optado pelo Stadium do Lumiar na tentativa de uma maior enchente, mas a verdade é que havia clareiras por entre o público. Talvez a cartada tivesse sido mal jogada. O FC Porto entra em campo sob os aplausos de toda a gente, num ambiente de desportivismo agradavelmente salutar: Soares dos Reis; Avelino e Jerónimo; Nova, Álvaro Pereira e Carlos Pereira; Lopes Carneiro, Waldemar Mota, António Santos, Carlos Mesquita e Nunes.
Um oooohhh! de desilusão soltou-se de várias gargantas.
Pinga não joga. O ás do ataque portista, atacado por uma doença impeditiva, ficava de fora.
Não tardou a ser a vez de o Sporting subir ao palco do grande jogo: Dyson; Jurado e Serrano; Abelhinha, Rui e Faustino; Mourão, Vasco, Soeiro, Ferdinando e Lopes.
Esfregam-se mãos suadas pelo nervoso miudinho. A peleja ia começar. o árbitro Luiz Câmara apitou para o início.
O FC Porto entra forte. Arranca um canto logo no primeiro minuto. Sem consequências. O Sporting reage de imediato. A bola vai com velocidade de um meio campo para o outro.
António Santos remata com perigo. Mourão chuta a roçar o poste.
Carlos Mesquita magoa-se na batalha central: é obrigado a sair, um esgar de dor altera-lhe a face.
Avelino e Soeiro batem-se rijamente, tal como prometera o plumitivo, é um choque constante entre duas figuras de grande porte físico e de inusitada valentia. Quase que se podem ver saltar faíscas como se fossem dois postes de alta tensão exigindo para si o mesmo espaço do campo.
Não há Pinga, mas há Nunes.
Os minutos vão-se escoando e há mais luta do que classe, mais vontade do que arte, mais atitude do que técnica.
O FC Porto vai mantendo o resultado que fará dele campeão.
Subitamente, Soeiro. Foge à marcação de Avelino e entrega a bola a Ferdinando: o remate sai, inesperado, violento, Soares dos Reis estica-se em vão. 1-0.
Gritos nas bancadas: «Viva o Sporting!!!».
Ainda há retardatários à procura dos seus lugares.
A alegria leonina é clara e evidente. A equipa desenha movimentos enleantes, a qualidade do seu jogo cresce com o entusiasmo, Soares dos Reis já é o homem do jogo por tudo o que tem feito para evitar o segundo golo. Abelhinha é o motor do meio-campo sportinguista. De súbito, António Nunes foge, endemoninhado, uma força brusca contrariando a tendência dos acontecimentos, ultrapassa um adversário em corrida e lança Nunes para o empate.
41 minutos.
O golpe foi violento. Vinha aí o intervalo para juntar uns momentos de descanso a outros de reflexão.
A verdade é que os portistas tinham conquistado uma vantagem emocional que os conduziria ao primeiro título de campeão português. E que os leões perceberam a enormidade da missão que tinham pela frente, chocando contra uma defesa inflexível comandada por um guarda-redes intransigente.
O primeiro lance da segunda parte revela-se fatal: António Santos e Lopes Carneiro trocam a bola entre si e o remate deste último bate Dyson.
Ah! Como irá o Sporting lutar pelos três golos que lhe são exigidos? Ainda por cima obrigado a manter a sua baliza longe de apertos. Não consegue. Percebe-se a olhos vistos que muitos dos seus jogadores estão desolados. O seu ataque em massa esbarra na paciência do opositor, nas bolas atiradas para fora, nas perdas de tempo. Soeiro fará o empate à beira do fim. Há desordem nos peões. Os adeptos do FC Porto gritam, álacres: «Somos campeões! Somos campeões!».