Pawel Adamowicz fez parte do sindicato Solidariedade nos anos 1980, participando na resistência ao regime comunista. Eleito pela primeira vez presidente da Câmara de Gdansk em 1998, foi sucessivamente reeleito ao longo do tempo. Aos 53 anos, era um dos principais rostos da tolerância num país cada vez propenso às divisões, onde o partido da Lei e da Justiça (PiS), também ele surgido das lutas do Solidariedade, tem imposto desde que voltou ao Governo, em 2015, um discurso de permanente confronto.
Sinal deste tempo em que o discurso político, não só na Polónia, se torna divisivo e violento, Gdansk conheceu a tragédia no passado domingo, com o esfaqueamento do seu presidente de câmara, em palco, perante milhares de pessoas estupefactas que não tiveram capacidade para reagir: um homem de 27 anos, com antecedentes criminais, saltou para o cenário e esfaqueou Adamowicz.
Stefan W., o assassino, vinha de cumprir uma pena de cinco anos de prisão por assalto a um banco e, segundo a sua própria confissão, via Adamowicz e a Plataforma Cívica (que governou o país entre 2007 e 2015) como responsáveis pela sua desgraça. Curiosamente, o presidente da Câmara de Gdansk abandonou a Plataforma Cívica em 2015.
A polícia fala num homem com perturbações mentais, mas poucas olham para esta morte como desprovida de contexto político. Mesmo não existindo uma relação direta entre a mão que empunhou a faca e os círculos políticos do PiS e o discurso promovido pelo seu líder e cofundador, Jaroslaw Kaczynski.
Lech Walesa, fundador do Solidariedade e ex-presidente polaco acusou os políticos pela tragédia: «Todo o tipo de pessoas doentes fazem este tipo de coisas, mas é a política que se deve culpar de toda esta situação». Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu e ex-primeiro-ministro pela Plataforma Cívica, viajou de Bruxelas para prestar a última homenagem ao amigo: «Prometo-te aqui hoje, querido Pawel, que por ti e por todos nós defenderemos a nossa Gdansk, a nossa Polónia e a nossa Europa do ódio e do desprezo».
A Grande Orquestra da Caridade de Natal, a maior angariadora de fundos para beneficência, foi durante anos uma organização que generalizadamente unia os polacos – na tarefa comum de angariar dinheiro para adquirir equipamento médico para os hospitais -, até o PiS virar o seu discurso contra a iniciativa e transformá-la num símbolo de odioso liberalismo. Que o presidente da Câmara de Gdansk tenha sido assassinado durante a realização do espetáculo não pode deixar de ter a sua interpretação política.
Adamowicz, a organização de beneficência e o seu fundador, o músico rock Jerzy Owsiak, têm sido alvo da propaganda do PiS e de outros movimentos de extrema-direita – um grupo nacionalista de juventude emitiu uma «certidão de óbito política» para o presidente de câmara assassinado, cujo discurso em defesa dos direitos LGBT e da aceitação de refugiados o tornaram alvo habitual de diatribes extremistas.
A facada no coração de Adamowicz não deixa de ser uma facada no coração da democracia polaca. O presidente da câmara, de 53 anos, atingido no domingo, ainda resistiu até segunda-feira. Um padre garantiu que não rezaria por ele. Kaczynski pediu que não se politizasse a tragédia, mas não compareceu na sessão parlamentar de quarta-feira em que se respeitou um minuto de silêncio e se homenageou o político falecido. «O ódio matou Pawel. Um ódio demente, um ódio muito bem organizado», afirmou no Parlamento o líder da Plataforma Cívica, Grzegorz Schetyna.
O diário Rzeczpospolita lançou um apelo na primeira página da edição de quarta-feira: «Acabem com o discurso de ódio». Para o jornal, assiste-se hoje na Polónia à «brutalização do debate público» e a «uma onda de ódio que emerge tanto dos media tradicionais como da internet».
O diretor do jornal, Boguslaw Chabota, não tem dúvidas: «Essa onda encorajou o assassino de Pawel Adamowicz a agir». Porque, «mesmo hoje, com o país inteiro de luto, os trolls da internet estão a felicitar o homicida, transformando-o em herói nacional, exigindo que os seus atos se repitam», escreveu em editorial.
Passados mais de 30 anos da queda do comunismo na Polónia, seria difícil ver um país mais dividido do que está atualmente. E para quem defende a liberdade, a tolerância, o respeito pelas ideias contrárias, o ambiente tornou-se tóxico, de vida ou de morte, como se poder ver pelo homicídio do presidente da Câmara de Gdansk. E mesmo uma coisa aparentemente neutra como a maior organização não lucrativa do país, como é a Grande Orquestra da Caridade de Natal, se pode transformar em objeto de ódio.
Pelo menos dez pessoas foram detidas esta semana pela polícia polaca por apelos à morte e à agressão de políticos considerados demasiado liberais. Entre os detidos está um homem de 72 anos que telefonou para um centro de segurança social a dizer que o próximo na linha para ser assassinado é o Presidente Andrzej Duda que, curiosamente, foi membro do PiS.
Adamowicz era um dos 11 presidentes de câmara que tinha sido alvo das falsas certidões de óbitos emitidas pela Juventude Completamente Polaca, depois da assinatura de um documento favorável à receção de imigrantes no país, contrário às políticas restritivas da imigração postas em prática pelo Executivo do PiS.
Milhares de pessoas juntaram-se, na quarta-feira à noite, à viúva e às duas filhas de Pawel Adamowicz em Gdansk para velar o presidente da câmara. As bandeiras da cidade foram colocadas a meia haste. Outros milhares manifestaram-se pelo país contra o ódio e a violência. A missa de corpo presente realiza-se hoje na Basílica de Santa Maria desta cidade no norte da Polónia. No livro de condolências, Walesa escreveu: «Adeus, meu amigo neste vale. Iremos encontrar-nos em breve num lugar melhor».