Encontrei esta frase em Coimbra, próximo da universidade. E Coimbra é uma cidade muito fértil em frases criativas e inspiradas pintadas nas paredes. Diz esta frase: «Sei onde caoticamente danço e simplesmente respiro». Este é, pois, um breve poema, muito bonito, muito simples e simultaneamente muito profundo.
Dançar caoticamente é o que todos fazemos em determinados momentos da vida, quando o nosso ritmo, já por si só acelerado, parece lançar-se a galope, calcando por cima de nós e dos outros, rumando desenfreado ao infinito. E, acompanhando-o, parece que ficamos parados, incrédulos perante tal voracidade. É como se nos apartássemos de nós próprios, sem acreditar que somos nós quem ali está, quem realiza mecanicamente aquelas ações, quem dança caoticamente, sem rumo definido, numa pista de dança inglória, de terra batida, agreste, que nos magoa os pés descalços e a alma desprotegida e frágil. Como diz Drummond de Andrade: «O que muda na mudança, / se tudo em volta é uma dança / no trajeto da esperança, /junto ao que nunca se alcança?».
É quando a música para que, sem fôlego, conseguimos finalmente inspirar, que sentimos a nossa respiração e a do nosso companheiro de dança. É nesse silêncio que a respiração ganha dimensão e se torna um elemento fundamental para a tomada de consciência, para a revolta que, por vezes, sentimos por nos deixarmos enredar no carrocel da vida, que gira sem parar e nos impede de descer e respirar.
Esta dança caótica e frenética faz-me lembrar o momento, de grande intensidade, do projeto teatral que Marco Martins realizou, com um grupo de imigrantes, portugueses e de outras nacionalidades, que vivem e trabalham em Great Yarmouth, no Reino Unido, representado em Lisboa, em julho de 2018.
Uma das personagens-atores, Maria do Carmo Ferreira, representava o seu dia a dia numa fábrica de perus, e os seus gestos ganhavam um ritmo de tal modo alucinante que se assemelhavam a uma dança caótica, repetitiva, dolorosa e violenta. Cortar a cabeça ao peru, tirar-lhe as entranhas, separar a carne, embalá-la tornaram-se gestos mecânicos, de uma revolta não contida e sempre latente. É nesse esquema rítmico que penso quando leio dança caótica, quando imagino o vórtice centrípeto de uma dança diária, sem descanso, quando recordo as palavras de Carmo: «Aquilo era horrível. Vi homens grandes a chorar, não queriam estar ali e não aguentavam aquilo. Foram embora. Com o tempo fui-me habituando e acabei por ficar (…) [na fábrica ] oito anos».
As pessoas acabam por habituar-se a quase tudo, mesmo à miséria, ao lixo, à podridão, à violência, à falta de sentido para a vida. As pessoas são capazes de se tornarem autómatos, de realizarem mecanicamente as mesmas ações, vezes e vezes sem fim, fazendo por não pensar e, sobretudo, por não sentir. Conseguem suspender as suas vidas, colocá-las num estádio indefinido e em equilíbrio precário, porque a necessidade fala mais alto, porque o orgulho teima em não admitir o erro, porque a esperança de que o futuro será melhor é sempre a estrela guia, que orienta a dança caótica e levará, por fim, a um suspiro de calma e paz.
São estes heróis, capazes de suportar agonias sem fim, que nos fazem ver quão privilegiados somos por termos quem nos substitua nas tarefas difíceis, quem faça os trabalhos sujos por nós, para que possamos, com maior tranquilidade ou a um maior ritmo, usufruir do lado belo da vida, do lado A da vida, do lado onde mora a beleza.
Maria Eugénia Leitão