Miles Davis é um nome incontornável do jazz e da história da música. Recordado por muitos como um dos, talvez o melhor de todos os músicos, tenho para mim que não sou especialista na matéria que Miles Davis não é só talento e improviso. Acho até que é sobrevalorizado enquanto instrumentista. Sim, isso mesmo, Miles é um mito bem construído, muito mais do que um trompetista genial que não foi possível conter nuns clubes de jazz quasi marginais. Miles Davis é uma lição de marketing, da construção à gestão corrente de uma marca que, ao longo do seu percurso, cruzou muitas vias. Até a do vício em heroína.
Em primeiro lugar o nome, que raio de nome é este Miles Davis. Quem é que se chama assim, mesmo nesta era estranha em que parece que nos esforçamos para batizar os nossos filhos com nomes de elfos? Se ainda antes de conhecer a figura conhecemos o nome, imagine-se o sucesso que um nome destes pode fazer, Miles Davis. Homem? Mulher? Uma banda? Um novo estilo musical? Miles Davis, Miles, tem uma sonoridade própria que é uma espécie de tanino auditivo aveludado que, mesmo não querendo dizer nada, transmite-nos logo uma ideia de estarmos perante algo invulgar e imprevisível. Podemos não associar a nada, mas dois fenómenos são inegáveis: é agradável (som) e difícil de esquecer. E um bom nome é sempre muito mais fácil de recordar e gostar.
Em segundo lugar, após uma breve passagem pela sua discografia (versão spotify, no meu caso), percebemos o quão impressionante é a seleção de artistas que, ao longo das várias décadas de atividade, fizeram música com Miles Davis. Talvez tenha sido ele a ter o engenho de os descobrir e a procurar formas de os atrair, tirando partido dos seus talentos? A lista é impressionante e, para um mero curioso do jazz como eu Dizzie Gellespie, Nat King Cole, John Coltrane, Chick Corea, John McLaughin, Keith Jarret são mais de metade dos nomes de músicos de Jazz que sou capaz de citar de cor. Miles trabalhou com todos eles. Liderou algumas das melhores performances musicais de sempre – a história da música começa muito antes dele e, se um dia acabar, Miles estará morto, mas o som de All Blues poderá muito bem ser a banda sonora desse momento. Uma marca sozinha pode ir muito longe, mas não se compara com o que pode alcançar se estabelecer as parcerias certas.
Kind of Blue de Miles Davis é um dos álbuns mais influentes da história do jazz. Mesmo o meu ouvido ‘mouco’ é capaz de reconhecer uma sonoridade diferente do que se ouvia até à data. Foi o maior sucesso comercial da carreira de Miles. Às duas palavras que formam o seu nome, outras duas são permanentemente associadas ao músico: blues e cool. Americanices, é certo, mas mais uma vez termos muito fáceis, que toda a gente conhece e que facilmente repete. Quanto mais exclusivos e únicos forem os territórios de uma marca e o que ela representa, maiores serão as suas hipóteses de se distinguir dos seus concorrentes. Convém, também, que seja relevante, isto é, o seu ponto de diferenciação deve de ser valorizado e desejado peles pessoas. No caso do Miles o tempo deu-lhe razão. A coragem para arriscar valeu-lhe, mais do que fortuna, criou uma sonoridade reconhecidamente sua, sempre inovadora e desafiadora dos padrões das várias épocas que atravessou. Miles entrou na cena com o bebop e chegou a acompanhar DJ’s em clubes noturnos.
Certamente que para muitas pessoas ouvir um álbum de Miles do princípio ao fim é penoso. Compreendo e não critico. Quase sempre instrumental, ritmos aparentemente iguais, sem sentimento nem emoção (há emoção, claro que há, e muita, mas não é automático, o jazz é difícil de entender e até de sentir), nem letras nem nada para dançar, as músicas parecem intermináveis. Se experimentarmos estes argumentos para convencermos alguém a ouvir uma música é bom que tenhamos mais qualquer coisa para oferecer, tentar esta linha de discurso com qualquer uma das minhas filhas é garantia de umas horas bem passadas… sozinho. As marcas também não podem querer ser tudo para todos, têm que tomar decisões, algumas bem difíceis. Fazer cedências, muitas delas estruturantes, não é um processo fácil: «não, não quero um grupo alvo de consumidores assim tão alargado», são palavras raras, mas por vezes muito sábias. Escolher, tomar decisões não é fácil. Miles sempre fez diferente e se calhar até se borrifou para o que os outros pensavam ou para os conselhos que lhe davam.
Um último ponto, a imagem: talvez nem a Marylin Monroe tenha tantas imagens icónicas, daquelas que dão belos quadros para as paredes de bares e escritórios, como Miles Davis. Há imagens do Miles étnico, do homem e o seu trompete como se fossem um só, de um disco man, silhueta, macro, são inúmeras as fotografias de antologia de Miles Davis, basta uma pesquisa no Google para ficarmos com uma ideia. As marcas dominam a ‘ciência’ da imagem, apesar de tantas vezes se questionarem e mudarem. Uma imagem impactante não é fácil de conseguir, o seu valor é inestimável. E é possível ter um histórico de imagens impactantes, mesmo que se vá mudando com o passar dos anos.
Um bom nome, as parcerias certas, fazer algo único, ter a coragem de não querer agradar a todos e uma imagem inolvidável. Parece fácil, mas não é. Afinal, Miles foi só um e nem sequer terá sido o melhor instrumentista. Se calhar conseguia escrever este texto a partir do Tom Jobim. Também músico genial, com um talento foi impossível de conter. Mas se toda a gente conhece a Garota de Ipanema, não estou nada certo que reconheçam a cara do homem sentado ao piano, pelo menos tão bem como as bochechas ou os caracóis de Miles.
*Responsável Planeamento Estratégico do Grupo Havas Media