Já estive numa cidadezinha no País de Gales com um nome de provocar cãibras na língua até ao mais veloz e mais batido dos vendedores de qualquer lota: Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch. Mas nada se compara com Krungthep Mahanakhon Bowon Rattanakosin Mahintara Ayuthaya Mahadilok Popnopparat Ratchathani Buriromudomrat Chaniwet Mahasithan-amonpiman-avatansathir-sakkathatitya-visnukamprasit. Assim se chamava Bangkok ao tempo da sua fundação. O bom senso reduziu-o a Krungthep, ‘A Cidade dos Anjos’. Ou apenas a Bangkok, [Banguequoce] o lugar onde nasceu, na margem esquerda do Chao Phraya.
«The gift Bangkok offers me is the assurance I will never be bored», escreveu William Warren. Recordo a chuva. O homem que conduzia a piroga ao longo do rio parecia não dar por ela e, no entanto, caía em cordas grossas, incessantes. O barco estreito subia veloz as ondas inquietas ficando, de repente, suspenso no ar, a hélice rodando no fim do cabo compridíssimo que a ligava ao motor, mergulhando finalmente com dureza sobre novas ondas. O estômago soltava-se-me volta e meia do seu lugar para se juntar aos pulmões, empurrando todos juntos a laringe até à boca. Dizem os marinheiros que nada como uma boa refeição antes de uma viagem atribulada para acalmar os enjoos. Mas não eram os enjoos que incomodavam o meu estômago vazio e mal cuidado. Eram simplesmente as súbitas sensações do vago, como se navegássemos no vácuo.
As monções deviam ter chegado ao fim, mas teimavam em desobedecer ao calendário. Por entre as cortinas de água eu tentava espreitar as silhuetas dos palácios. Talvez fossem Wat Arun, o Templo da Madrugada, e Wat Kalayanimit, frente a frente, na embocadura do Khlong Bangkok Yai, que desagua no Chao Phraya. São com certeza. Bangkok multiplica-se em templos e palácios, mas nenhuns são tão gémeos, tão completos. Tinha o corpo encharcado, os sapatos enfiados em cinco dedos atravessados de água que enchiam o fundo da piroga. Da varanda de madeira de uma casa debruçada sobre o rio, dois meninos mergulhavam nas ondas castanhas gritando de alegria, parecendo surgir de um lugar qualquer antigo do tempo em que os tai se consideravam jâo nâam, ou os «senhores das águas».
Bangkok e a água confundem-se. Uma teia labiríntica de canais, sobretudo do lado de Thonburi, a margem direita do rio, velha capital da Tailândia antes de o rei Rama I ter decidido transferi-la para a margem esquerda, para Bangkok. Vejo as casas construídas em teca tocando a corrente; os barcos estacionados debaixo das janelas, frente às portas; as lojas de legumes e de fruta de taipais abertos para os clientes flutuantes; os vendedores ambulantes flutuando também eles em pirogas ajoujadas de mercadorias; as ratazanas equilibrando-se em vigas de madeira e mergulhando lado a lado com os meninos; as árvores acastanhadas confundindo-se com a cor das águas agitadas. E subitamente um tudo nada de sol. O cadáver inchado de um cão voga ao sabor de uma vontade que já não é a sua. Porcos escuros chafurdam na lama. Há no céu um pouco de azul.
O Lugar das Azeitonas
Chamaram-lhe primeiro Bang Makok, o Lugar das Azeitonas. Tornou-se capital da Tailândia em 1782. Nesse tempo, ainda a Tailândia era o Reino do Sião. A designação definitiva de Tailândia só se tornou oficial a partir de 1939, por influência de Phibul Songkhram, o líder militar responsável pela revolução de 1932 que conduziu à queda da monarquia absoluta e colocou no trono Rama VIII, com apenas 10 anos. Phibun era o homem forte do país e assim se manteve até ao final da II Grande Guerra. E o velho Sião tomou o nome de Prathêt Thai. Prathêt vem do sânscrito pradesha, ou país; thai tem a conotação de livre, mas a intenção do batismo pareceu mais prosaica e menos romântica: país dos thai, ou dos tai, o povo que se espalha do sul da China ao norte da Malásia, de Assam até Tonquim.
Quando a noite cai em Bangkok, a Silom Road, a Surawong Road e as suas transversais enchem-se de casais estranhos: ingleses, alemães, belgas ou franceses encanecidos passeiam-se de mão dada com jovens mulheres de corpos magros, olhos rasgados e tez escura; bares de portas iluminadas anunciam dançarinas a «go-go»; homens de expressões concupiscentes oferecem menus que trazem desenhadas um sem número de posições do kamasutra; travestis fazem convites sórdidos com a sua voz esganiçada e confusa de hormonas.
– Come on, farang! Beautiful girls!, grita-me uma figura grotesca enquanto caminho pela confusão babélica de Soi Patpong. São quatro horas da manhã e o beco ferve de comércio barato, quinquilharias e imitações expostas em bancas sobre os passeios e no meio do asfalto. Lâmpadas e néones de todas as cores.
– Come farang! See…
Farang: abreviação de farangset, francês. Para os tailandeses, todos os estrangeiros são farang. A História explica que o vício é antigo, da segunda metade do Séc. XVII, o tempo em que o rei Narai expulsou os holandeses e os ingleses do Sião, mas permitiu que os franceses mantivessem um destacamento de 600 soldados estacionado no reino.
– Maa farang, maa…
O sexo enjoa na madrugada de Bagkok. Capital asiática da prostituição, chamam-lhe no ocidente. Mais de 250 mil prostitutas espalhadas por todo o país, diz um estudo publicado pelo Instituto Populacional da Universidade de Chulalongkorn. Mas também é preciso recorrer à História para entender toda esta oferta incessante que brota na rua, que se camufla nos vãos das portas, que caminha a nosso lado falando languidamente, quase em súplica, um inglês que ninguém entende. «Há ainda muitos homens ricos na Tailândia que mantêm várias mulheres», explicou-me Tukkata. «Mia yái e mia nói, chamamos-lhes. Mia yái é a mulher grande, a mulher a sério. Mia nói são as mulheres pequenas, aquelas que são sustentadas pelos homens que as têm».
Ao longo das décadas, os imigrantes chineses foram abrindo os seus bordéis que os anos de guerra, da II Grande Guerra à Guerra do Vietname, serviram para fazer prosperar, tão grande chegou a ser o número de militares estacionados no território, sobretudo no norte, em Chiang Mai, ainda hoje a província com maior concentração de prostitutas. As crianças que vejo aqui e ali, oferecendo-se aos estrangeiros, foram provavelmente vendidas pelos próprios pais. Os seus clientes doentios são faces de uma excentricidade macabra.
Entre o boxe e um pangolim..
Uma excitação elétrica toma conta da multidão que rodeia o quadrado do ringue. A tarde está no fim e, lá fora, um céu negro suspende-se sobre a cidade. O homem nervoso sentado a meu lado faz-me perguntas a eito e diz-me que devo voltar na terça-feira à noite, aqui ao Estádio Lumphini. É na terça-feira que se disputam os melhores combates.
Mas hoje é somente sábado. A cada soco, a cada joelhada, a cada pontapé desferido com precisão na cabeça do adversário, o público vibra numa tensão histérica. Gritos! Provavelmente insultos, pressinto pelos olhos injetados, pelas artérias do pescoço que se alargam, pelos gestos irritados. Risos! Satisfação pelo dobrar do dinheiro investido em apostas? Uma atenção nervosa na expectativa do sangue. Na Avenida Rama IV há homens que se encolhem uns contra os outros para melhor espreitarem os combates que a televisão transmite em direto. Notas de bath viajam de mão em mão.
Para quem quer comprar um pangolim (e vá lá saber-se para quê alguém quer um pangolim, a menos que acredite que a sua pele escamosa seja, de facto, um afrodisíaco infalível), nada como um domingo de manhã no mercado de Chatuchak. O tuk-tuk que me conduz na direção de Chatuchak Park esgueira-se a uma velocidade vertiginosa por entre as filas compactas de automóveis que se dirigem pela Phahonyothin Road em direcção aos bairros suburbanos de Lat Phrao, Bang Khen e Saraburi. O ar que me entra nos pulmões vem saturado do fumo dos escapes.
Há um homem em Chatukak que se esforça por vender um elefante. A zona do mercado que está destinada à venda de animais é um verdadeiro zoológico. Peixes aos milhares, de todos os feitios e todas as cores; lagartos adormecidos em caixas de vidro; cobras destinadas às refeições negociadas a metro; aves estranhas e raras; porcos, galinhas, cães, veados, macacos.
Chatukak é um labirinto no qual um homem se perde por entre mercadorias indescritíveis. Bonecos de madeira esculpidos à mão vindos das tribos das montanhas; cachimbos de ópio; amuletos e antiguidades; medalhas, fardas e capacetes esquecidos pelos americanos no tempo da guerra; roupas, chapéus, sapatos, frutas, flores e mobílias. Uma mulher soberba, envergando um phâasin brilhante, uma versão tailandesa dos sarongs indianos, procura vender-me um casal de tucanos. Mas um tucano faz-me tanta falta como um pangolim…
Barcos rosnam sobre o canal numa teimosia de motores velhos.