Um Cerco que não deixa ninguém de fora

Os campeões crónicos de ginástica acrobática e de grupo, com teatro e natureza no recreio vivem no Porto. Longe dos preconceitos, o b,i. encontrou no Cerco um agrupamento de escolas onde os problemas viram desafios e onde alguns sonhos se realizam.

«Não deixar ficar ninguém para trás». O lema das escolas do Cerco passa muito ao lado dos rankings, da definição dos melhores e piores, dos mais e dos menos. Aqui, nas sete escolas do agrupamento da Campanhã, Porto,  a motivação é a palavra de ordem e o envolvimento dos familiares nessa tarefa não é esquecido. Sem pretensões de passar matéria por passar, o objetivo é «antes de mais fazer, sair daqui melhores cidadãos». E, apesar de estas escolas estarem inseridas num ambiente socioeconómico complexo, com esta filosofia o aproveitamento letivo tem vindo a subir – havendo mesmo alunos a entrarem no superior com algumas das médias mais altas.

As escolas deste agrupamento abrangem todos os graus de ensino – do pré-primário ao secundário – e não raramente são vítimas de estigmatização, por estarem inseridas no maior aglomerado de bairros sociais do país, mas pouco a pouco vai aprendendo a ultrapassar os preconceitos associados ao Cerco do Porto – outro Cerco, que já nada tem a ver com as lutas fratricidas entre liberais e absolutistas em 1832 e 1833 e que estão na origem do seu nome. A realidade fora dos portões – naquelas ruas onde continuam a morar vários nichos marginalizados – continua marcada pela criminalidade e pelo tráfico de droga. Manuel António Oliveira, diretor do agrupamento, bem como Paulo Ferreira, subdiretor, partilham a gestão quotidiana de mais de dois mil alunos e aceitaram receber o b,i. para falar da estratégia de sucesso. Já perderam a conta aos prémios e às distinções que têm sido conquistados – o mais recente foi o Prémio Verde, conquistado pela criação de uma quinta pedagógica, com pomares e animais. A iniciativa, defendem, «colocou o campo dentro da escola e trouxe-o para a cidade, pelo menos para os mais novos se convencerem que os produtos hortícolas e os animais não foram nunca produzidos nos supermercados onde se vendem».

São quatro, as vitrinas que, de alto a baixo, estão cheias de distinções. Mas os prémios são apenas o resultado, tudo o resto são pessoas e muito trabalho. Paulo Ferreira, com 26 anos de escola, não hesita e, alinhado com as palavras da funcionária da portaria, Ana Carvalho, assegura ao b,i. que «não trocava esta escola por nenhuma outra».

O espaço foi requalificado há dez anos pela Parque Escolar. E apesar do contexto de que todos falam, não há qualquer sinal de vandalismo. E, para os professores, nada mais de poderia exigir ao comportamento destes alunos: sempre que saem para viagens, recentemente foram a Inglaterra, «são impecáveis».

A música que aproxima todos

Uma das imagens de marca deste agrupamento é o seu projeto musical que “forma, educa e inclui”, segundo referiu o professor José Manuel Pinto, que abrange já quase uma centena de alunos de todos os graus de ensino – foi entretanto formada a Orquestra Juvenil de Bonjóia, estando em preparação um coro juvenil (alunos) e outro adulto (pais).

«Já desde 2010 que este projeto, envolvendo na sua grande maioria famílias carenciadas, tem sido um fator decisivo de inclusão, mas também uma opção de vida e profissional, já que pelo menos meia dúzia de alunos vão seguir os cursos superiores na área da música», explica.

Um dos casos é o da aluna Maria Clara: «Como eu sempre gostei muito de música, queria aprender, isto é muito importante para mim, toco violino aqui na escola e orquestra, pretendendo no futuro seguir a minha carreira profissional na música».

Quem percorre os corredores das escolas deste agrupamento perceber que não foi por acaso que há menos de duas semanas a Câmara Municipal do Porto ofereceu diversos instrumentos musicais aos seus alunos. Foi, aliás, um facto sublinhado pelo músico Miguel Araújo, que é padrinho do projeto Música Para Todos, no concerto dado pelos estudantes nos Passos Perdidos da Câmara Municipal do Porto. Um evento muito elogiado por autarcas e funcionários municipais, dada a qualidade do desempenho musical.

E a experiência não se ficará por aqui. Sérgio Ramos, professor de música nas Escolas do Cerco do Porto, recebeu o b,i. a meio de uma aula, e garantiu estar a ser feita já uma articulação de horários «entre professores para a formação musical avançar”. 

Desporto ajudou a ganhar competência

A música é muito, mas não tudo. O responsável pelo Gimnocerco, o Grupo de Ginástica Escolar, Sérgio Silva, destaca que num meio notoriamente carenciado, como o que envolve as escolas do agrupamento, «o desporto em geral e a ginástica em especial têm ajudado a ganhar as competências necessárias para a vida». Isto tudo, além de ter combatido bastante o abandono escolar e igualmente o insucesso, aumentando o rendimento nas aulas. 

Sendo um dos mais antigos professores desta escola, Sérgio Silva dá conta das três classes de ginástica com duas dezenas de alunas cada, uma das quais de elite – tem sido campeã nacional de ginástica acrobática desde 2003, com estudantes dos 10 aos 18 anos, conquistando há sete anos o título nacional de ginástica de grupo.

“Se há alunos que em outras escolas são admirados pela negativa, aqui conseguiu-se que os nossos estuantes fossem admirados pela positiva, elas e eles destacam-se pela positiva, dentro da sala de aulas e também lá fora quando vão representar a escola e o próprio país”, salienta o Sérgio Silva, orgulhoso das várias gerações que tem ajudado a formar, um trabalho que já foi mote para dois doutoramentos e um mestrado na área desportiva e social.

A carta de uma aluna muitos anos depois

O depoimento emocionante de uma antiga aluna das escolas do Cerco do Porto, dirigida muitos anos depois ao professor Sérgio Silva pode muito bem resumir o sentimento comum e o sucesso da estratégia que tem sido seguida: «Senhor professor, não sei se ainda se lembra de mim, fui sua aluna há mais de 30 anos, hoje vivo em Lisboa, tendo a felicidade de saber agora, através do Facebook, que continua a ensinar ginástica, relembrando os momentos maravilhosos que aí vivi, os quais guardo na minha caixinha dos momentos mais felizes da minha vida, recordando sempre o senhor professor como disciplinado, exigente, dedicado e paciente, sendo que ao longo de todo o meu percurso escolar pessoal, escolar e até profissional serviu-me de referência», recordou a aluna, frisando o impacto que aquele agrupamento teve na sua vida: «Os meus pais nunca souberam muito bem o que se passava comigo, não tinham tempo e dedicavam-se muito ao seu trabalho, ainda guardo o primeiro fato de ginástica que tive e que os meus pais foram comprar com muito sacrifício, porque o dinheiro era muito pouco, mas eles davam-me tudo aquilo que podiam, sendo que graças à ginástica eu descobri que tinha algum valor, que se fosse disciplinada, eu poderia ir mais além, com o seu apoio eu os outros alunos fomos ultrapassando os nossos medos, lembrando-me de ver o meu pai na banca a assistir ao nosso sarau, a primeira vez que assistiu a algo em que eu participei». 

Projeto Comunidades para todos

Cristina Costa, professora da Escola do 1.º Ciclo do Cerco do Porto, é a responsável pelo Projeto Comunidades, de que faz parte o ensino pré-primário. Apesar de servir uma percentagem elevada de famílias de etnia cigana, está a conseguir combater o elevado absentismo. «O nosso ponto de partida foi precisamente essa mesma realidade, trabalhando sempre no envolvimento da própria comunidade com grupos interativos na escola, tendo sempre por base voluntários, desde familiares dos alunos a mestrandos da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, estimulando o trabalho dos estudantes», explica a professora, enaltecendo «o trabalho dos cerca de 30 voluntários».

«As principais vantagens de tais grupos interativos é conhecerem o meio e a escola, são um recurso mais para a escola, permitindo valorizar o trabalho na sala de aulas, ajudando os professores, contribuindo decisivamente para a mudança das mentalidades face à escola», explica Cristina Costa, acrescentando: «Cerca de 60 por cento destas nossas crianças são de etnia cigana».

Mas também existe, entre muitos outros, o projeto permanente do Clube da Ciência, que, a par da Sala de Energia e da Sala do Conhecimento, está a cargo da professora Isabel Pelicano, de Física e Química, com demonstrações práticas e com explicações sobre as energias alternativas.

A cerâmica é outra aposta do Agrupamento de Escolas do Cerco do Porto, inclusivamente com alunos de Erasmus que estão na comunidade escolar, segundo explica a professora Luísa Amorim, adiantando que se trata de alunos do Projeto Integrado de Educação e Formação.

O professor José Bastos, da disciplina de Educação Visual, há muito que tem vindo, em parceria com outros colegas, a dedicar-se a projetos de cidadania.

Mas a estratégia passa também pela aposta em atividades como a fotografia – com o Clube da Fotografia – até à restauração (ensino profissional). Graças a parcerias que vão desde o Grupo Soane à Fundação Calouste Gulbenkian, bem como os Empresários pela Inclusão Social, conseguiu-se um trabalho de fundo – com a participação da bibliotecária Idalina Meirinho e do professor Ricardo Sousa – com o objetivo de  apoiar os chamados «alunos de risco». Promove-se a recuperação curricular e também comportamental.

Não menos importante é a interação com o Teatro Nacional de São João, que conduziu as professoras Paula Cristina Cruz, Maria José Ramos e Maria Teresa Borges a um trabalho com o ator/encenador Manuel Tur, preparando alunos para interpretarem Gil Vicente no Teatro Carlos Alberto.

A Quinta Pedagógica integrada no Projeto Eco Escolas, do Ministério da Educação, promove a interação com os animais e destina-se a todos, inclusivamente a alunos com multideficiência – o projeto é dirigido por Dimas da Cruz.