Quando viajei sozinho pela primeira vez, com destino a Inglaterra, tinha um objetivo bem definido: comprar umas ‘doc martins’. Na altura participava num programa de intercâmbio de estudantes e, durante 15 dias, vivi em casa de uma família inglesa na cidade de York. Descobri entre outras coisas que tinham batatas fritas de pacote com vinagre, um Kit Kat com +20% do tamanho e o que era um pint. Contrariamente à minha expectativa, não foi nada fácil encontrar umas ‘doc martins’ mesmo já sendo um adolescente que, apesar de imberbe, tinha pé de adulto e a típica determinação da idade. Lá corri as ruas de lojas de York até encontrar uma que as vendesse, comprei umas pretas apesar de não terem a famosa biqueira de aço. Paciência, aqui devem preferir assim pensei eu. E como estava feliz! Com esta experiência aprendi que a marca é Dr. Martens, em minha defesa só posso dizer que isto foi antes da democratização do acesso à internet. E que as podia ter comprado em Lisboa, procurando bem, até com a tal biqueira de aço.
Alguns anos depois fui a Londres, não me lembro se ainda usava Dr. Martens mas recordo o quão admirado fiquei quando, algures no centro da cidade, encontrei uma loja exclusiva da marca. Vendiam de tudo, carteiras e malas, camisas, casacos, canetas e canecas. O showroom de botas era abismal de tanta oferta. Comprei uma camisa que durou uns anos, mas não consigo colocar esta experiência num patamar sequer próximo do que foi a compra das minhas botas anos antes.
As Dr. Martens foram um símbolo da minha adolescência, como a minha mãe gosta de me recordar de vez em quando «até as levavas para a praia e dizias que eram fresquinhas…o que eu te aturei». Usei-as durante anos, troquei-as por outras e depois outras, todas diferentes dentro do estilo. Um par de botas ainda acabou os seus dias como elemento decorativo, numa composição da expressão da irreverência característica daquela idade. Acho que nunca mais usei uma peça de vestuário como elemento decorativo. A camisa? Devia ser gira, com riscas pretas e brancas, ou cinzentas, azuis, já não faço ideia e da mesma forma que não me lembro do seu fim, muito provavelmente vítima de uma limpeza de mudança de estação.
A minha experiência com a Dr. Martens ilustra – e recorda-me – que as marcas são o que são, definem-se através de valores, têm momentos, representam e ajudam a incorporar uma determinada atitude. Há uns tempos num cada vez mais raro exercício de zapping apanhei um documentário sobre a marca, onde explicavam o processo de fabrico, valorizavam a componente de fabrico manual e todo o saber dos sapateiros, vendiam bem a marca como um produto único. Não me recordo de falarem em camisas, malas ou carteiras. Quando vibrava com as minhas botas calçadas não sabia nada disto, não era importante, mas estes novos pormenores enriqueceram e, de certa forma, revitalizaram a narrativa que retenho da marca. Foi um momento walkdown the memory lane altamente recompensador.
Entretanto já percebi que a Dr. Martens está por todo o lado. Na semana passada entrei numa loja de ténis, daquelas que têm os modelos expostos na parede e uma das paredes era inteiramente dedicada à marca. Batia uma martelada forte nas colunas de som, uma tentativa de recriar o ambiente dos clubes de dança, e nada disto encaixou no meu imaginário da Dr. Martens, que associo aos Clash ou Sex Pistols que em boa verdade já não oiço.
Mas hoje recebi a machadada final: um e-mail da La Redoute em que o grande destaque vai para a coleção de Dr. Martens. Nada contra a La Redoute, estão a fazer o seu papel, desde que o produto seja fashion é passível de ser elegível para a sua gama, sobretudo se vender bem. Mas a Dr. Martens devia ser outra coisa e, para mim, para a minha história com a marca, jamais podia estar ali.
As estratégias de criação de submarcas e extensões são sempre arriscadas, o risco de descaracterização e perda de identidade é real. Não conheço o negócio da Dr. Martens para poder discutir se é, ou não, a melhor hipótese para a marca, certamente alguém terá feito esse trabalho e chegado a uma conclusão diferente daquela que o meu sentido empírico, altamente influenciado por um fortíssimo sentimento nostálgico, aponta. Mas creio que, quem as compra hoje em dia, as Dr. Martens não são um símbolo de irreverência e rebeldia como foram para mim e, arrisco, para outras gerações. Não duvido que para a marca possa ser muito interessante e rentável vender os seus produtos a mais pessoas ou em novos espaços. Mas umas ‘doc’ de um lado e uns Nike Air Max do outro, mesmo gostando das duas marcas, não se combinam na minha organização mental.
Olho para a Dr. Martens e lembro-me do Star Wars, com todas as suas sequelas e facilmente concluo que sou eu que estou errado. A cada filme da saga Guerra das Estrelas, foi assim que a conheci, geram-se mais receitas, conquistam-se novos espetadores, uma das maiores demonstrações da capacidade do marketing da Disney. E fãs? Aquilo que provavelmente melhor distingue a saga dos Skywalker dos restantes filmes do género e não só. Pergunto-me se o último Jedi tem a capacidade de entrar na cabeça das pessoas, perturbando-as ao ponto de se vestirem como uma espécie de urso com dois metros e urrarem uns com os outros? Ou fazer com que adultos crescidos se vistam de mendigos para se guerrearem com espadas de plástico em público?
O marketing mais eficaz é o marketing orgânico. A capacidade de influência depende da genuinidade da mensagem e do mensageiro, além do interesse que temos pelo tema, tanto ou mais do que a originalidade da forma ou formato em que a mensagem nos chega. O fashion dificilmente cria fãs, pois fã é o que resiste nos momentos em que um conteúdo, produto, serviço não é fashion, muitas vezes porque há alternativas melhores. E são muito raras as marcas que conseguem viver sem fãs, pois a moda é por definição um fenómeno efémero, apesar de cíclico, e o preço o mais replicável dos argumentos.
E agora Dr. Martens, quem é que vai cuidar de ti quando, daqui por uns anos, voltarmos de novo aos sapatinhos de vela?
*Responsável Planeamento Estratégico do Grupo Havas Media