No centro de saúde onde trabalho, os médicos mais antigos têm vindo a deixar o serviço por terem atingido a idade de aposentação.
Dessa faixa etária sou eu o mais novo, razão pela qual me mantenho ainda em funções. Nesta unidade conheci muita gente, não só médicos mas também enfermeiros e administrativos, sem falar, claro está, nos doentes que já partiram, cada um com a sua história e muitas recordações. Mas continuam sempre comigo.
Talvez por ser o ‘único sobrevivente’ desse grupo, ultimamente várias pessoas têm-me perguntado quando chegará a minha vez. Percebo o alcance da pergunta e, a pouco e pouco, vou preparando os doentes para os novos tempos que um dia hão de chegar. A explicação é simples: quando eu cessar funções, eles vão ter de escolher outro médico – mas desta nova geração, o que os poderá trazer inquietos pela diferença de mentalidade que nos separa.
Pelo que tenho notado, estes colegas mais novos vêm com um poder de organização de consultas e de gestão do tempo no serviço muito superiores ao nosso. A experiência diz-me que, nessa área, nós falhámos. Na ânsia de dar resposta a tudo, acabámos por habituar mal os doentes, originando uma série de problemas que vieram para ficar. Não conseguimos ‘educá-los’, por exemplo, quanto ao excesso de medicamentos, à automedicação e ao consumo desmedido de consultas. Preocupámo-nos em criar listas de utentes que rapidamente se tornaram exageradas e quase ingeríveis, e o trabalho em equipa nunca foi para nós uma prioridade.
Recentemente, uma das doentes mais antigas perguntou-me abertamente se eu me iria reformar em breve. Respondi-lhe assim: «Ainda não tenho tempo para isso, mas a senhora não ficará sem médico quando eu sair. Estão cá muitos colegas». Não muito convencida, a senhora continuou: «Tem razão senhor doutor, mas são todos tão novos… Tenho algum receio». Lembrei-me então do que se passou comigo, já lá vão não sei quantos anos e disse-lhe: «Quer ouvir uma história?».
Estava eu a começar a Medicina Familiar quando, no final de um dia de trabalho, o então prior de Santo Condestável, padre Mário Cunha, me telefonou pedindo-me se podia lá ir ver o seu colega e colaborador padre Joaquim Bragança, doente há dias com um quadro febril arrastado, possivelmente de causa respiratória. A residência paroquial é anexa à igreja, e funcionava nessa altura como uma vulgar casa particular. O prior era uma pessoa de fino trato e esmerada educação, atento ao mais pequeno pormenor.
Joaquim Bragança era diferente. Professor universitário, historiador, austero, possuidor de uma invejável cultura, era uma pessoa muito ‘metida consigo’. A minha missão era, pois, de enorme responsabilidade, não só por ser ainda um ‘novato’ como pelo paciente difícil que tinha pela frente. Ao aperceber-se do meu acanhamento, o prior chamou-me à parte e disse-me: «Está na hora de pôr a render o talento que recebeu. Os outros seus colegas mais velhos já tiveram o seu tempo. Agora é preciso dar lugar aos novos. Ninguém é insubstituível. Atrás de uns virão outros». E após uma curta pausa concluiu: «E a vida não vai parar».
Era um voto de confiança que me estava a ser dado, e aceitei esse desafio. Correu bem a minha ‘estreia’: o doente seguiu à risca as minhas recomendações e eu dei o meu melhor para o tratar. Missão cumprida.
A utente ouviu a minha história e saiu do gabinete querendo esboçar um sorriso mas a ‘engolir em seco’…
Transportando este testemunho para os nossos dias, chegamos à conclusão de que as diferenças não são grandes. Médicos no final de carreira e médicos a iniciarem agora as suas funções – aguardando que a vida se encarregue de lhes dar uma oportunidade para poderem pôr a render os talentos que receberam.
E todos nós lhes devemos dar um voto de confiança e colaborar com eles numa dinâmica que, dia após dia, ano após ano, se vai repetindo pelo tempo fora. Não tenhamos medo. Já sucedeu o mesmo connosco. A História não anda para trás. E a vida não vai parar.
(À memória dos padres Mário Cunha e prof. dr. Joaquim Bragança)