M esmo sem prémios – desta vez –, a pequena embaixada de criadores portugueses deixou a sua marca na 69.ª edição do Festival de Berlim. Uma força confirmada por Carlo Chatrian, ex-diretor criativo do festival de Locarno e que passa a ocupar a mesma função na Berlinale. «Como sabe, sempre fui um grande adepto do cinema português», confessa-nos durante um encontro ocasional. Quem também acredita que Berlim continuará a ser uma boa montra para o novo cinema português é Luís Chaby Vaz, presidente do Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA), responsável pelo apoio ao desenvolvimento da atividade cinematográfica em Portugal.
Foi no pavilhão de Portugal no EFA, o European Film Market, que o responsável nos atualizou relativamente aos principais incentivos dedicados à produção de cinema no nosso país e divulgados durante o festival pela ministra da Cultura, Graça Fonseca. Em particular o mecanismo do cash rebate, um incentivo de ordem fiscal destinado a atrair investimento estrangeiro em produções ou co-produções realizadas em Portugal.
A ministra da Cultura anunciou aqui em Berlim novos apoios a conceder ao cinema, nomeadamente os incentivos do cash rebate. Tratando-se de um sistema que já existe há muito tempo, porquê este atraso na sua implementação no nosso país?
Talvez chegue com atraso, ainda assim o nosso sistema é relativamente inovador em termos europeus. A maior parte dos países europeus tem sistemas de cash rebate – no fundo, uma capacidade de recuperação fiscal do investimento que é feito através de um filme. No nosso caso estamos a falar de um sistema que, efetivamente, injeta dinheiro na produção. Ou seja, parte desse investimento realizado no território nacional pode ser recuperado e aplicado na produção de filmes. Portanto, estamos a falar de dinheiro vivo que pode ser utilizado em tempo útil na própria produção do projeto. É bastante agressivo, porque nós ainda por cima criámos um sistema muito aberto. Aqui não se trata propriamente de analisar a qualidade intrínseca do projeto, o prisma é mais na sua utilidade económica e na reativação de uma rede de trabalhadores e técnicos na área do audiovisual português que precisam de ter o seu modo de vida assegurado.
Portugal está na moda, não é?
Sim, Portugal está na moda. E temos a multiplicação de ligações aéreas que confirmaram essa abertura efetiva ao mundo. Só nos Estados Unidos abriram no último ano quatro novos destinos. A capacidade de ficarmos conectados com o mundo é muito maior.
Não somos Malta, mas quase…
Acho que temos bastantes vantagens relativamente a Malta. Se olharmos para a nossa população, pela nossa diversidade étnica, e imaginarmos um casting para figurantes, podemos ter africanos, marroquinos, indianos, chineses. Além disso, somos um país bastante seguro. E barato. Isso são vantagens muito interessantes no que toca à grande produção internacional. O que nos interessava era meter estas vantagens dentro de um package e apresentá-lo enquanto tal. A reação está a ser ótima.
Como foi feita essa ‘engenharia’?
Foi o próprio ICA em trabalho muito próximo com o Turismo de Portugal, que desde cedo se mostrou interessado. Percebeu que o cinema e o audiovisual são ótimas ferramentas de venda da imagem do país. Os EUA começaram há 15/20 anos com coisas muito simples. Por exemplo, as diversas séries CSI, Nova Iorque, Miami ou Las Vegas foram pagas pelas respetivas Film Comissions com fundos diretos. Lembramo-nos como o CSI começava sempre com imagens maravilhosas de cada cidade antes de aparecer o primeiro cadáver. Isso eram estratégias de captação de rodagens e de promoção turística. Portanto, o turismo teve essa abertura ao perceber que esta era uma boa ferramenta.
Posso aqui fazer uma provocação e comparar este cash rebate ao que foi feito com os vistos gold?
Na verdade, houve um momento em que pensámos nisso.
Foi uma ferramenta que deu bons resultados e trouxe muito dinheiro. Mas também criou inflação imobiliária…
Em Nova Iorque o sistema de captação de investimento foi criado a partir do visto gold, que no caso deles é o green card. Ou seja, quem fizesse investimentos no cinema obteria o green card. Portanto isso já foi utilizado. No entanto, quando surgiram os primeiros problemas ligados aos vistos gold acabámos por abandonar esse perfil de investimento. Não acredito que fosse cem por cento virtuoso um investimento feito apenas para a obtenção de uma qualquer mais-valia pessoal. Acreditámos que seria mais vantajoso alicerçar isso num projeto de cinema, séries, animação ou outro produto audiovisual. A partir daí criámos uma vantagem competitiva.
Em termos concretos o que já está feito e o que podemos contar?
No primeiro ano de execução temos já cerca de 25 candidaturas apresentadas.
Tudo para 2020?
Não, não. São candidaturas em marcha. Já estão executados os contratos. Há produtores nacionais e internacionais que já estão a beneficiar do cash rebate. Uma das vantagens competitivas que quisemos lançar foi a rapidez da decisão. Até agora temos conseguido que os projetos apresentados sejam decididos em 20 dias. Isso é muito competitivo. Obriga-nos a tomar decisões rápidas. Neste espaço de tempo, os projetos são apoiados e financiados e o dinheiro entra na rua.
Acha que este tipo de soluções poderá até criar alguma concorrência e alternativa ao enorme investimento – americano por exemplo – que é feito na Europa Central, nomeadamente nos grandes estúdios de Budapeste e Praga? É isso que nos falta, não concorda?
É verdade. Historicamente existem vários projetos de estúdios que não chegaram a ser implementados. Algarve, Margem Sul, Cascais, Sintra… Já existiram diversas tentativas de se criarem cidades do cinema. É certo que temos alguma lacuna nessa matéria. Existem estúdios de média dimensão que são bastante capazes de enfrentar grande parte da produção, como o caso da Plural. Mas fazem falta grandes estúdios e grandes casas de pós-produção como tem, por exemplo, Espanha. Só que isso depois é muito difícil de alimentar. Agora uma coisa é certa: todos os grandes projetos de investimento que estão a ser analisados e avaliados têm de vir com uma boa carteira de encomendas, caso contrário estamos a criar elefantes brancos.
Presumo que não estamos apenas a pensar no cinema?
A abertura é total. Cinema, televisão, web series… Hoje em dia as fronteiras do audiovisual estão cada vez mais alargadas. Faz-se cinema e audiovisual em plataformas diferentes. Por outro lado temos de tentar fixar o grande know how que se perdeu. Enquanto organismo público temos de ter essa preocupação social, porque estes programas não são apenas para colocar Portugal no mapa. Todos os anos estamos a lançar jovens licenciados em cinema, em produção, no que se entender. Mas depois não temos espaço de fixar esse talento nacional. Foi um pouco também esse pano de fundo que nos levou a criar este sistema de atração e fixação de talento nacional.
Verificamos no último boletim do ICA que existe um decréscimo significativo de espetadores nas salas de cinema. Até que ponto esta ‘moda do cinema em Portugal’ pode também animar o parque de salas?
Devemos ver estas tendências em ciclos mais alargados. O ano passado foi o primeiro ano em que houve um decréscimo. Não foi muito significativo, mas ainda assim foi um decréscimo. Apesar de tudo estamos com mais salas do que o ano passado. Talvez sejam mais monocromáticas, se quisermos, mais dedicadas a um tipo de cinema, de lógica de distribuição, mas não temos menos ecrãs do que tínhamos há dez anos. Outra coisa é a mudança nos hábitos dos consumidores.
Há salas, como o Monumental, uma referência em Lisboa, que ameaçam fechar.
O próprio negócio está a mudar. Um outro problema, mais sério, é a quota de mercado do cinema português. Nós temos uma quota extremamente baixa para os valores portugueses. Nesse sentido temos de perceber o que podemos fazer para a alterar. Isso não tem a ver com uma tentativa de condicionar o cinema que se faz em Portugal. Agora, temos de garantir que existe mais diferenciação para o produto português e europeu, que existem condições de consumo razoáveis, coisa que neste momento não existe. Nós temos uma exibição e distribuição excessivamente concentrada em grandes players. Isso condiciona a estratégia do cinema português.
Também não é um cinema com capacidade de viajar muito para além do circuito dos festivais…
Nem todos os filmes portugueses e europeus são feitos para terem muito púbico. Mas temos agora muito mais capacidade de fazer público do que anteriormente. Os resultados podem ser diferentes se tiverem mais janelas de exibição, mais tempo de exibição, um trabalho de promoção mais prolongado, contextualização diferente da própria obra que é vista.
Mas será só esse o problema?
Os problemas de consumo de cinema português têm também a ver com condições de iliteracia cinematográfica que existe efetivamente em Portugal. Portugal não tem só baixos níveis de consumo de cinema: temos poucas visitas a galerias, poucas idas ao teatro, pouca leitura de livros. Historicamente somos um país com poucos hábitos culturais. O problema da iliteracia em Portugal tem de ser combatido. E o cinema é um dos dados mais fáceis de avaliar. São dados credíveis.
(uma parceria Sol com www.insider.pt)