Mais de uma década após as primeiras labaredas da Grande Crise, grande parte da população está familiarizada com a enxurrada de estímulo que os maiores bancos centrais desencadearam. O mantra foi o de combater o abrandamento com um dilúvio de liquidez recorrendo a métodos inovadores – leia-se experimentais – como taxas de juro negativas e a impressão massiva de moeda. Após uma recuperação económica generalizada, algumas destas autoridades começaram a sinalizar a descontinuação das políticas e entre abril e novembro do ano passado o indicador de massa monetária mundial mostrou uma redução dos 73Tri dólares para cerca de 70Tri. Porém desde então este processo foi abruptamente interrompido e até invertido, tendo o mesmo indicador registado recentemente novos máximos acima dos 73Tri. As medidas de emergência tornaram-se permanentes e os bancos centrais estão encurralados.
A política monetária tradicional tem como objetivo suavizar as oscilações do ciclo económico por via da calibração da taxa de juro de referência. Ao influenciar o ‘preço do dinheiro’ os bancos centrais pretendem gerar incentivos nos mercados de crédito, procurando estimular/arrefecer as dinâmicas de investimento e consumo que são determinantes para o nível de crescimento. Mas estas são ferramentas cíclicas, o que acontece caso as razões de um abrandamento sejam de natureza estrutural? Julgo que é precisamente o dilema cíclico vs. estrutural que tem levado os bancos centrais do mundo a aventurarem-se por mares monetários pouco navegados. O ciclo estrutural de acumulação de dívida está a chegar – ou chegou já – ao seu limite. A esta realidade juntam-se as questões da inversão das pirâmides demográficas e dos efeitos da tecnologia, tudo contribuindo para tornar cada vez mais ineficaz a política monetária tradicional. Contudo, os recentes estímulos ‘inovadores’ não são mais que uma versão extrema dos tradicionais, comportando maiores riscos de overdose. Na ânsia de se querer controlar os ciclos são criadas dinâmicas que canibalizam lentamente o sistema capitalista. As compras dos bancos centrais são cada vez mais uma força dominante nos mercados, uma que os distorce e torna menos livres, dando origem a ineficiências de liquidez transacional e por conseguinte um sistema de preços mais errático.
Os efeitos nocivos são também notórios ao nível da economia ‘real’. Taxas artificialmente baixas permitem a empresas pouco ou nada rentáveis sobreviveram por via de sucessivos refinanciamentos baratos. A perpetuação destas entidades zombie traduz-se em menos mercado e capital para novas ideias e empresas florescerem. Corta-se o motor de inovação que é a ‘destruição criativa’ de Schumpeter, sendo a estagnação japonesa um exemplo paradigmático desta armadilha zombie. Porém, os efeitos secundários não se ficam por aqui. Por forma a comprimir as taxas de juro em prazos alargados os bancos centrais criaram moeda para proceder a compras massivas de ativos em mercado – principalmente obrigações soberanas para facilitar os refinanciamentos de países cujos governos os sobre-endividaram. Este tipo de políticas monetárias expansionistas – ironicamente muito apoiadas à esquerda – tendem precisamente a aumentar o fosso entre os detentores destes ativos e a restante população. Uma dinâmica que exacerba a desigualdade e por conseguinte acelera ainda mais o dominó do populismo.
*Gestor fundo macro no BIG – Banco de Investimento Global