O desaparecimento da letra E

Percebo que seja difícil acreditar neste labirinto literário no qual caberiam meia dúzia de Minotauros apavorados

Há, em Paris, uma praça que leva o nome de Georges Perec: ‘Plac G org s P r c – crivain Français, 1936-1982’. Assim mesmo, sem nenhum E. Afinal, Perec escreveu La Disparition, uma obra de arte do atrevimento. Ou mesmo da protérvia. Porque não existe em qualquer das suas cerca de 300 páginas a letra E. A tal desaparição.

Diga-se que esta insolência de Georges era bem menos espontânea do que se possa pensar. Fazia parte de uma corrente literária, inventada por ele, Alfred Jarry, Italo Calvino e Raymond Queneau à qual chamaram Ovroir de Littérature Potentielle (OuLiPo) e que tinha como princípio reduzir ao mínimo a inspiração e elevar ao máximo a transpiração. Ou seja, criar um conjunto de regras às quais deveriam obedecer de forma absoluta. Tal como, por exemplo, escrever um livro inteiro sem a letra E, por acaso a mais utilizada em francês. Ou talvez não por acaso. Perec era, no mínimo, e como eles gostam de dizer, «un peu têtu». Isto é, um cabeça de mula, numa tradução mais liberal, que eu de regras gosto pouco.

Li La Disparition em francês e nem faço ideia se há uma versão portuguesa, de Portugal mesmo, já que em português do Brasil existe O Sumiço, traduzido por outro tipo amalucado com o nome cheio de E: Zéfere. Com ligeiro toque de facilitismo poderia considerá-lo um policial, por muito bizarro que pareça. A verdade é que se desenrola perante a investigação que tenta decifrar o mistério do desaparecimento da letra E. Antoin Vagol dá pelo tal sumiço e deita mãos à obra como um detective – se é que me dão licença de abusar tanto do E em apenas quatro sílabas – até que acaba igualmente por desaparecer e ser, por sua vez, procurado pelo amigo Amaury Consoant.

Percebo que seja difícil acreditar neste labirinto literário no qual caberiam meia dúzia de Minotauros apavorados. Mas deixo-vos aqui exemplo da trama: «Anton Voyl n’arrivait pas à dormir. Il alluma. Son Jaz marquait minuit vingt. Il poussa un profond soupir, s’assit dans son lit, s’appuyant sur son polochon. Il prit un roman, il l’ouvrit, il lut; mais il n’y saisissait qu’un imbroglio confus, il butait à tout instant sur un mot dont il ignorait la signification». E continua por aí fora, movido por um formidável sentido de humor no qual não cabe a letra E uma vez só.

Lembrei-me de Perec por causa de Robert Schlienz. Se a amputação de uma letra não impede um livro de ser excelente, a amputação de um braço não impede um avançado de marcar golos, aliás como já o tinha provado o uruguaio Hector Castro na final do Campeonato do Mundo de 1930. 

Nascido em 1924, Robert viu o seu sonho de se tornar jogador de futebol interrompido pela incorporação compulsiva num regimento da Wehrmacht enviado para a frente leste. Talvez o vento da fortuna tenha empurrado a bala que lhe perfurou os queixos. Ficou com uma feia cicatriz mas regressou à vida civil e ao futebol, tornando-se num terrível marcador de golos no Estugarda algo que só abonava a favor da sua reconhecida pontaria, tanto no campo de batalha como no campo da bola. Entre 1946 e 1948 torturou sem piedade defesas e guarda-redes adversários.

No dia 13 de agosto desse ano, recebeu de chofre a notícia da morte da mãe. Era a véspera de um jogo fundamental para a Taça da Alemanha e Schlienz não estava disposto a ficar de fora. Pediu o automóvel emprestado a um colega. Faria os 70 quilómetros que o separavam de Aalen, assistiria às exéquias, e voltaria a tempo de se juntar à equipa. Não podia sequer sonhar no que viria a acontecer nas 24 horas que se seguiram. O Destino preparava-se para lhe bater à porta de forma muito grosseira.

Estava calor na manhã de 14 de agosto. Mesmo muito calor. Robert pressionava até ao fundo o acelerador do DKW emprestado, galgando quilómetros na urgência de se juntar à sua equipa. Tinha aberto as janelas e levava, displicente, o braço esquerdo de fora, segurando o volante apenas com a mão direita. Um buraco na estrada fez com que a viatura tombasse de supetão. Depois foi de arrasto até terminar o seu percurso de encontro a uma árvore.

O braço de Schlienz desfez-se entre a chapa e o alcatrão. À hora em que devia entrar em campo encontrava-se inconsciente numa cama de hospital. A amputação fora inevitável. Mas não o impediu de continuar a escrever o livro da sua vida. Que também podia ter por título La Disparition.

Exatamente 113 dias depois do acidente, Robert Schlienz subia ao relvado para defrontar o Bayern de Munique. Marcou os três golos da vitória. Ainda tinha um pedaço suficiente de braço para usar a faixa de capitão.

afonso.melo@newsplex.pt