Coloquemos os clubismos de lado, esqueçamos as cores defendidas por cada um e concentremo-nos apenas no essencial: o que é o Sporting Clube de Portugal? Em termos absolutos é muito mais do que um clube. É, na sua génese, uma das maiores forças motrizes do desporto nacional. Uma instituição de utilidade pública que teve ao longo dos anos uma tremenda influência social e cultural não só em Lisboa mas em todo o país. Uma escola de formação de atletas, de futebolistas, de cidadãos. Uma fonte de virtudes e valores morais, um veículo para a saúde através da prática desportiva, um aglutinador de massas e um berço de paixões sem limites. Mas por força dos tempos em que vivemos é também uma empresa, um negócio que movimenta milhões, uma Sociedade Anónima Desportiva cotada em bolsa. E também por isso as exigências de quem assume os seus destinos são enormes e não podem ser desvalorizadas: ser presidente do Sporting é liderar uma das mais históricas, marcantes, mediáticas e poderosas instituições que Portugal alguma vez conheceu, e o desempenho desse cargo tem de ser obrigatoriamente levado a cabo com uma tremenda noção de responsabilidade.
Nos últimos anos, infelizmente, isso não aconteceu. Não houve quaisquer limites para os erros crassos que foram sendo cometidos, não houve liderança séria, não houve consciência das consequências dramáticas que teria uma gestão «completamente irresponsável», nas palavras do próprio Francisco Salgado Zenha, atual administrador da SAD leonina. Consequências essas que agora se fazem sentir de forma tremenda, como se estivéssemos perante um amanhecer violento que se abate sobre os sócios e adeptos do clube. Não há outra forma de dizer as coisas para que se perceba de uma vez por todas aquilo que está em causa: o Sporting Clube de Portugal vive a maior e mais grave crise financeira da sua história e o risco de perder o controlo maioritário da SAD é uma realidade cada vez mais próxima e inevitável. Não que essa perda de maioria seja necessariamente negativa, mas deixemos esse tema para um texto futuro.
Falemos de coisas concretas: o Sporting celebrou em dezembro de 2015 um contrato de cedência de direitos televisivos – mais a exploração de publicidade no estádio, mais o patrocínio da camisola da equipa principal, mais uma série de cedências que não importa agora elencar mas que hipotecaram sobremaneira as receitas futuras – válido até 2028, por valores na ordem dos 515 milhões de euros. O contrato, válido por 10 temporadas e cuja primeira foi esta que agora se aproxima do fim, significaria um encaixe teórico superior a 51 milhões por época, não fosse o facto de a anterior direção ter já antecipado (e gasto!) mais de 205 milhões do respetivo contrato, ou seja, cerca de 40% do montante total. Tudo isto ainda antes de começar a primeira das 10 épocas às quais se refere o valor do acordo em causa! Isto significa que, para as 9 épocas que restam, sobram ‘apenas’ 309,6 milhões, com a agravante de o Sporting já só ter a receber 3,3 milhões em 2018/19 e cerca de 11 milhões em 2019/20. Dinheiro a sério, encaixe significativo proveniente deste contrato, agora só mesmo em 2020/21, já que até lá está tudo antecipado e gasto. E não sou eu quem o diz, é mesmo a SAD do Sporting em prospeto enviado à CMVM no final de fevereiro.
Dito desta forma e após uma primeira análise mais ou menos superficial, o assunto nem parece particularmente grave. Afinal o Sporting ainda tem mais de 300 milhões a receber só desse contrato e manda a lógica que os mais de 200 milhões antecipados pela anterior direção tenham sido aplicados em amortização de passivo, liquidação de dívidas, construção de um plantel competitivo… Certo? Errado! Comecemos pelo Empréstimo Obrigacionista de 30 milhões (outra forma comum de financiamento além da antecipação de receitas futuras de contratos celebrados) cujo pagamento vencia em maio de 2018 mas que viu o seu prazo de liquidação prorrogado para novembro de 2018. A anterior direção gastou esses 30 milhões – a somar às centenas que referimos anteriormente no que concerne ao contrato de direitos televisivos – mas deixou mais essa fatura para a direção seguinte, privando-a de poder financiar-se através de novo Empréstimo Obrigacionista, já que a operação levada a cabo em novembro não chegou sequer para fazer frente ao pagamento em falta desde maio. Mas há mais! Além de ter privado a direção seguinte de poder antecipar verbas do contrato de direitos televisivos ou de recorrer a emissões obrigacionistas – só por si uma herança pesadíssima em termos de limitação operacional –, a direção anterior ainda deixou mais um presente para quem viesse a seguir: nada mais nada menos do que 29,8 milhões em dívidas a clubes e 24,3 milhões em comissões por pagar, num total superior a 54 milhões de dívidas de curto prazo de acordo com o último Relatório e Contas do Sporting. Nada mau para quem tanto apregoava o seu «milagre financeiro» e a sua «gestão exemplar».
Haverá algo mais a acrescentar aos 30 milhões de incumprimento obrigacionista, aos 205 milhões de verbas antecipadas do contrato da NOS e aos 54 milhões de dívidas a clubes e empresários? Pois, infelizmente parece que sim, pelo menos a julgar pelos processos que constam desde 7 de fevereiro no portal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e que ascendem a cerca de 5 milhões de euros. E a que se referem? A alegadas dívidas e incumprimentos no pagamento do Pavilhão João Rocha, o tal que estava integralmente pago e com verbas excedentes já aprovisionadas para esse efeito caso o Sporting perdesse o processo contra a Doyen. O tal que era impossível o clube perder… mas perdeu. E é nesse mesmo portal que podemos também consultar o processo que mais se temia mas que começava a adivinhar-se como inevitável: o pedido de insolvência da SAD leonina por parte da SAD do Vitória Sport Clube, que reclama uma dívida imediata superior a 4 milhões referentes ao incumprimento de pagamentos pelo brasileiro Raphinha.
O quadro é negro e a descrição da situação atual do Sporting podia continuar por várias páginas como esta, repletas de episódios gravíssimos e cujas consequências estão ainda por descobrir. Para onde foram as receitas antecipadas ninguém sabe, já que o clube está mais endividado do que nunca. Neste momento isso nem é o mais importante, já que é um passado impossível de apagar ou corrigir. O importante é o presente e o futuro. O importante é que se crie um ‘desígnio nacional’ para salvar o Sporting Clube de Portugal. Poderá ser à custa de perdões de dívida? De extensão de prazos de pagamento a clubes que estão, também eles, dependentes dessas mesmas verbas? Dificilmente. Cada SAD é responsável pela sua gestão e tem de arcar com as consequências dos atos dos seus gestores. Mas não estamos perante um caso qualquer, estamos perante uma situação dramática de um clube que deu e dá tanto a este país. Uma crise que urge uma solução à altura. Frederico Varandas e a sua direção estão a fazer o que podem, descobrindo formas alternativas de financiamento cujos custos ainda estão por conhecer, mas que poderão permitir que o clube sobreviva para tentar levantar-se uma vez mais com a pujança de outrora. Merece – por isso e pela coragem de assumir a hercúlea tarefa de presidir os destinos do Sporting em tempos tão conturbados – a confiança e o apoio de todos os sportinguistas sem exceção. Não é hora de virar costas e debandar de Alvalade. Porque um clube que não consegue que os da sua própria cor se unam na sua intransigente defesa, não pode exigir complacência por parte de terceiros. E sem isso não há ‘desígnio nacional’ que se consiga criar e mobilizar no sentido de ajudar o Sporting Clube de Portugal a sair da profunda crise em que se encontra.