SNU não é um filme de esquerda. Também não é tanto um filme sobre ela, mas essencialmente sobre Sá Carneiro, o homem e o político que fundou o PSD, que liderou o centro-direita, que foi primeiro-ministro, morto cedo e tragicamente – para uns num acidente, para outros num atentado.
A película de Patrícia Sequeira começa com o desastre de Camarate, que é como começa a minha lembrança de Sá Carneiro. Estávamos a jantar quando o pequeno televisor a preto e branco dá a notícia. O pai transtornado sai de casa para tentar perceber o que se tinha passado. O país para em transe. Aos oito anos é só disto que tenho memória. Muito mais tarde perceberei quem foi Sá Carneiro e a importância que teve em Portugal.
Sá Carneiro, Mário Soares, Cunhal, Freitas do Amaral ou Ramalho Eanes são políticos da geração dos nossos pais. Foram todos adultos ao mesmo tempo. A minha geração, nascida nos anos setenta, antes ou depois de 1974, era criança quando eles disputavam eleições e governavam o país. Aos nossos olhos, eram tão velhos como os nossos pais. Aos olhos de uma criança, qualquer crescido é velho.
Quando comecei a interessar-me pelas questões políticas, pude enfim perceber qual o papel de Sá Carneiro na democracia portuguesa. O filme relata muitos episódios de dois livros que também li – Francisco Sá Carneiro, Solidão e Poder, de Maria João Avillez, e Sá Carneiro, de Miguel Pinheiro. Nas biografias, a relação com Snu Abecassis é sempre abordada como parte essencial da vida de um líder partidário de centro-direita, casado, católico praticante.
Pese embora essa relação tivesse quase sempre sido descrita com reserva e respeito pelas famílias envolvidas, o filme não se furta a mostrar, e bem, como foi usada sem pudor pelos adversários políticos. Mário Soares é aqui retratado como o político calculista que, embora visita de casa, não hesita em ser o propulsor dos rumores. Sejam de natureza puramente pessoal, sejam de caráter mais público – como o boato (a que hoje se chama fake news) de que Sá Carneiro era ‘caloteiro’. Daí eu ter escrito que este não era um filme de esquerda.
Houve um burburinho na sala quando as personagens foram claramente identificadas e mimetizadas – natural quando os protagonistas ou seus familiares estão vivos, sendo uma questão óbvia em biografias deste género. O público acha picante, os familiares ficam melindrados.
O objeto-filme, uma ficção e não um documentário, é muito bem filmado, tem um rigor estético que calha bem no par romântico, a reconstituição da época está bem feita, os atores são bem dirigidos, o som é ótimo, a iluminação tem momentos extraordinários (a cena do pedido de divórcio, ou quando o filho vai ao encontro do pai, fazem pendant). Tem tudo para ser um sucesso.
Há, claro, aquele ligeiro embaraço de vermos um primeiro-ministro, em tronco nu, a fazer a barba ou em abraços e beijos. O político feito homem. A geração de setenta cresceu e amadureceu, tendo um filme que lhe oferece as dores íntimas existenciais e universais que deveras sente. Ao fim e ao cabo, percebemos agora aquilo que então não alcançámos.
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