Todos os anos, por esta altura, os portugueses passam pela dura provação de preencher a declaração do IRS. A tecnologia já permite enviá-la pela net e, para alguns, até há liquidação automática, mas a prestimosa Autoridade Tributária continua a adorar o duche escocês. Primeiro, a tranquilidade: «A sua declaração foi aceite». Depois, a intimação: «O Anexo H não está completo». Mau…! Se sabem, por que perguntam? Por que não alargar a liquidação automática a toda a gente, enviando a ‘dolorosa’ com uma mensagem elegante: «Aqui tem aqui a sua continha, com os cumprimentos da AT. Caso não concorde, dirija-se ao seu bairro fiscal».
Estou convencido de que só apareceriam por lá uns cinco ou seis maduros, daqueles que adoram discutir o regulamento do condomínio, para quem a ida às Finanças é uma alternativa simpática às manhãs de palavras cruzadas.
Quem manda na nossa querida AT tem um prazer sádico em irritar os contribuintes. Adora chamá-los para confirmar dados que já lá tem, ou para resolver problemas que não existem. Um dia, farto de ser chamado para exibir os originais dos documentos, perguntei a razão de ser ‘sorteado’ todos os anos. A resposta foi desarmante: «É pelo gosto de cumprimentar os nossos melhores ‘clientes’»!
Ainda agora, a AR aprovou uma lei – que o PR promulgou em momento de manifesta infelicidade – a impor que os bancos enviem à AT a lista das contas com mais de 50.000 euros. ‘Em nome da transparência’, dizem… E com ‘garantia de anonimato’, juram… Ai é? Então, os parentes que trabalham nas Finanças não vão ter curiosidade de dar uma espreitadela? E os funcionários adeptos do FCP não vão enviar ao impagável Francisco J. Marques a relação dos sócios do SLB que ‘são ricos’? Tretas! É só esperar, até estar tudo escarrapachado nos jornais! Palpita-me que os senhores deputados ainda vão maldizer a transparência…
Por falar do tema… Há uns meses, fui à PSP participar uma ocorrência. Fui atendido por uma prestável graduada, que me pediu o cartão de cidadão, introduziu os dados no computador e começou a debitar:
– O senhor tem muitas multas por pisar o traço contínuo, tem de ser mais cuidadoso… Envergonhado, esclareci:
– Senhora agente, a última foi há mais de 30 anos…!
– Pode ser, mas está tudo aqui na sua fichinha. Nada falha!
– Então, tenho uma ficha? E o Estado segue os meus passos?
− Claro, é a transparência! Um bem supremo, numa sociedade democrática! Quer saber mais? O seu pai fez o registo do seu nascimento no dia 21 de novembro de 1946 – um homem cuidadoso, tinha 30 dias e só demorou duas semanas. E… reparo agora… 21 de novembro é o aniversário da sua filha Ana. Que coincidência!
– O quê? Os meus filhos também têm ficha?
– Claro, é a transparência!
Fiquei siderado. Mais ainda quando a senhora, com um sorriso malicioso, me segredou:
– Devia ter cuidado com as Estatinas. Anda a tomá-las há 17 anos… e não é nada conveniente.
Puxa! Até os medicamentos? Saí dali a transpirar.
Orwell tinha razão. Sem darmos por isso, qualquer dia lá estaremos… Felizmente, será tudo a bem da transparência.