Para o diabo com o sistema!

Depois do milagre do nascimento, que foi simples e natural como a maioria das coisas na natureza, começaram as burocracias.

Decidimos fazer o cartão do cidadão do bebé ainda no hospital. Seria mais uma coisa que ficava tratada. Em breve os bebés já terão de nascer com número de identificação fiscal, mas por enquanto só necessitam de números como este quando têm duas semanas de vida. A altura mais indicada para estarem numa conservatória cheia de gente a espirrar-lhes para cima.

Ainda estava no quarto do hospital quando a senhora notária entrou de tablet na mão para tirar uma fotografia ao recém-nascido. ‘Uau!’, pensei eu. ‘Desta vez vai ser tudo muito mais fácil!’.

Já em casa, quando tento fazer a marcação da consulta do recém-nascido pedem-me o número de identificação civil, o NIF e o número do SNS. Verifico que o cartão do cidadão só tem o número de identificação civil, mais o do SNS que lhe atribuíram no centro de saúde.

– Lamento, falta o NIF, que é imprescindível para a marcação –, dizem-me ao telefone.

– Mas a consulta também é imprescindível!

– Compreendo, mas não posso fazer nada. O sistema não permite.

– Não posso apresentar o número depois? O meu filho tem de ir a uma consulta às duas semanas, mas como o sistema não permite não há consulta?

– Exato. Posso ajudar em mais alguma coisa?

Agradeci, despedi-me e desliguei. Quando dizem que o sistema não permite, insistir é uma batalha perdida.

Entretanto ocorreu-me uma ideia. Marquei uma consulta em nome de um dos irmãos para não perder a vaga e quando tivesse os dados todos pedia para substituir. De seguida recebo um e-mail para confirmar a consulta carregando no link. Quando o faço aparece uma informação a dizer que a consulta expirou, não existe ou já está marcada. Extremamente esclarecedor!

Até que chega a carta para ir buscar o bendito cartão. Vou ao registo e pergunto se é naquele balcão que devo fazer o levantamento. Dizem-me que sim com uma expressão de quem responde a uma pergunta tola. Passado 50 minutos chega a minha vez. ‘Este cartão não se levanta aqui. É na porta ao lado’. Com tudo isto começa a aproximar-se a hora do bebé mamar e começo a ficar nervosa. Sento-me. Faltam mais de 30 números. Passado um bocado explico a situação.

– Deram-me a informação errada e tenho de ir dar de mamar ao bebé. Será que não me podem atender antes?

– Lamento, sem o bebé presente não posso dar prioridade. Até acredito que seja a mãe. Mas teria de o trazer.

Com meio mundo com gripe e a outra metade constipada, não me parece boa ideia levá-lo para ali. Saio e vou dar de mamar ao bebé que já estava desorientado. Quando regresso pergunto se tenho de tirar nova senha: ‘Ficámos sem sistema. Tem de voltar noutro dia’. ‘Mas o cartão não está aí?’. ‘Sim, mas sem sistema não o podemos entregar.’ Confirmo que as pessoas estão a tornar-se meras marionetas nas mãos do reverendíssimo sistema que raramente funciona.

No dia em que finalmente consigo trazer o cartão ligo para o local da consulta. Do outro lado uma voz responde-me: ‘Não temos nada em sistema marcado nesse nome. Posso ajudar em mais alguma coisa?’.

A consulta do recém-nascido acaba por ser marcada para as cinco semanas, quando já nem é considerado recém-nascido.

No momento em que escrevo esta crónica estou há mais de duas horas à espera da minha consulta pós-parto. Aproxima-se a hora de ir buscar os meus filhos à escola, por isso pergunto à rececionista se tenho muitas pessoas à minha frente. ‘Desculpe, mas este novo sistema já não permite dar essa informação’. Para o diabo com o sistema!