Vivemos tempos bizarros à boleia de um carrossel que se cobre de ridículo e roda sobre si próprio como um cachorro que persegue a própria cauda. Numa Feira Popular cuja popularidade anda pelas ruas da amargura, rodamos e rodamos até à náusea que descamba num vómito pestilento e inevitável. Sim, vivemos tempos bizarros. Tempos que ameaçam os conceitos de ética. De respeito. De moral. Tempos que abalam os próprios fundamentos do civismo e os valores de humanidade sem os quais mais não somos do que primatas desprovidos de consciência. Chegámos ao ponto de rutura, aquele ponto em que não há mais como ceder, como dobrar, como esticar, como calar. Acabou. O mundo como o conhecíamos acabou. Chega. Baixem as cortinas e acendam as luzes, abram as portas e metam a tocar essa música de elevador que indica ao público que o espetáculo chegou ao fim e está na hora de abandonar a sala. Sem direito a reembolso nem garantia de novas sessões, o encerramento é imediato e para urgente balanço.
A falência de costumes que grassa no nosso país é endémica e epidémica, própria de um povo pequenino que se leva demasiado a sério no momento de chamar a si méritos que não possui, mas que se auto-iliba quando chega a hora de assumir culpas e limitações. Um povo que não vai às urnas mas ‘grita’ todo o poder da sua revolta nas redes sociais, em virais textos repletos de calinadas que mais não são do que o reflexo de mentes abandonadas ao atrofio das palavras abreviadas. É o que somos por vontade própria – um povo abreviado num país adiado. Um país tão atrofiado que teima em despejar no desporto-rei todas as culpas do lixo em que se afoga. O futebol, de tão vasto e imponente, de tão mediático e esmagador, de tão poderoso e hipnotizante, tem um poder de encaixe que lhe permite ser o bode expiatório de todos os dislates da nação. Violações continuadas do segredo de justiça? «É o futebol que temos». Violência física e verbal exposta nas redes sociais? «É o futebol que temos». Corrupção e tráfico de influências? «É o futebol que temos». Evasão fiscal? «É o futebol que temos». Crime organizado, coação, roubo de correspondência privada, extorsão? «É o futebol que temos». Não, não é o futebol que temos. São as pessoas que temos no futebol!
Será que ainda há quem acredite neste logro? Nesta falácia requentada de antanho, quando o futebol era cozinhado como ‘ópio do povo’ em salas bafientas de ministérios caducos, pronto a ser servido como propaganda ditatorial de controlo de massas? Sabe lá o ‘povão’ o que isso era… Sabe lá o ‘povão’ o que isso é… Não! Não é o futebol que temos! O futebol não é causa nem consequência do lodo em que navegamos, não é veículo nem escape para moscambilhas de intervenientes caducos acabados de sair de uma trágico-comédia do Emir Kusturica. O futebol vive acima de tudo isso, habita num patamar de superioridade moral em relação à sociedade que o rodeia. Sim, o futebol é a mais fiel metáfora da vida real, mas é também um mundo à parte. O futebol que temos é o das defesas impossíveis do Casillas e das arrancadas ziguezagueantes do Brahimi. O futebol que temos é o dos cortes limpinhos do Mathieu e das bombas teleguiadas do Bruno Fernandes. O futebol que temos é o dos passes impossíveis do Pizzi e da magia de filigrana nos pés do Jonas. É o futebol do sorriso do Kikas após um golo, dos voos do Dyego Sousa nas alturas, da raça do André André em cada lance. O futebol não é causa dos males deste país. É vítima. E tem de ser protegido.
Que o futebol é muito mais do que um jogo, todos sabemos desde que começámos a correr atrás da bola. «Não. Com a mão não. Chuta!», disse o pai, o tio, o irmão mais velho, o primo, sempre que nos baixámos para tentar agarrar essa bola que teimava em fugir. «Chuta!». E nós chutámos para não mais parar de amar este jogo que é muito mais do que um jogo. Um jogo que é «a coisa mais importante entre as coisas menos importantes da vida». Um jogo que «não é uma questão de vida ou de morte, é muito mais importante do que isso». Um jogo onde «nunca ninguém viu um saco de dinheiro a marcar um golo». As palavras de Arrigo Sachi, Bill Shankly e Johann Cruyff há muito que deixaram de ser deles para passarem a ser nossas. Como nosso é o futebol. É nosso! Do povo! É no-lo oferecido pelo talento dos predestinados e não é qualquer delinquente que vai apoderar-se dele! Enquanto houver um adepto puro e verdadeiro, enquanto houver uma criança a correr atrás de uma bola, enquanto houver quem ame este jogo que é muito mais do que um jogo, ele não vai cair nas mãos erradas. Desenganem-se!
Já o disse e já o escrevi. Di-lo-ei até que a voz me doa, escrevê-lo-ei até que se me atrofiem as falanges. Isto não é futebol e nada tem a ver com futebol! Aquilo a que temos assistido, os macabros e deprimentes episódios recentes, os intervenientes que têm desfilado perante a nossa incredulidade, não são do futebol! Tentam aproveitar-se do mesmo, parasitá-lo, sanguessugá-lo em proveito próprio. Até quando vamos permitir que isso aconteça? Quero poder continuar a dizer e escrever: isto não tem nada a ver com futebol! Mas para isso as pessoas do futebol, aquelas a quem foram confiadas as chaves dos portões do templo, têm de fazer o seu trabalho, têm de conseguir purgar o mais belo espetáculo do mundo de todo o muco viscoso e putrefacto que o infeta. A convocatória é para todos: das Associações à Federação Portuguesa de Futebol; dos clubes à Liga; do Conselho de Arbitragem ao Conselho de Justiça e ao Conselho de Disciplina; do Governo aos órgãos de comunicação social; dos dirigentes aos empresários; dos adeptos às autoridades; do Ministério Público à Procuradoria Geral da República… A hora é de resgatar o futebol do sequestro em que se encontra e ninguém pode demitir-se das suas responsabilidades. Todos somos poucos! Chegou a hora de dizer basta! Já não há mais como ceder, como dobrar, como esticar, como calar…