Descomplexado, cosmopolita e eclético, Manuel Graça Dias era descrito pelos seus pares como alguém que gostava de cidades e cujos interesses se espraiaram para lá da arquitetura. Além de arquiteto, foi professor, crítico, investigador e divulgador da arquitetura, quer através da colaboração com jornais, televisões e rádios, quer através da produção literária. Morreu no passado domingo em Lisboa, vítima de um cancro no pâncreas, aos 65 anos. Completaria os 66 a 11 de abril.
Manuel Graça Dias nasceu em Lisboa, em 1953, e aos sete mudou-se para a então Lourenço Marques (atual Maputo). A família ficou em Moçambique dez anos, até 1970, e a dada altura da infância quis ser pintor ou artista plástico, como contou o próprio numa entrevista republicada pelo Expresso. Acabou por formar-se em Arquitetura em 1977 pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL) e logo no ano seguinte mudou-se para Macau, onde colaborou com o arquiteto Manuel Vicente.
Na década seguinte, em 1990, forma com Egas José Vieira o atelier Contemporânea, uma «das mais influentes assinaturas da arquitetura contemporânea em edifícios públicos que revelam uma preocupação sobre a passagem do tempo enquanto elemento constitutivo de uma relação atenta aos usos diferenciados e às transformações estéticas, sociais e urbanísticas das cidades», disse a ministra da Cultura na nota de pesar partilhada a propósito do seu desaparecimento.
Há muito por destacar no seu legado: a loja de Ana Salazar na Rua do Carmo, a remodelação do restaurante CasaNostra e a sede da Ordem dos Arquitectos (que dirigiu entre 2000 e 2004), todos em Lisboa, o Pavilhão Português da Expo de Sevilha (1992), o Teatro Azul de Almada, a Escola de Música, Artes e Ofícios de Chaves (2004-2008)… Já o Teatro Luís de Camões (Lu.Ca), que recuperou na Ajuda, em Lisboa, e que abriu portas no ano passado, é uma das suas últimas obras. O projeto está nomeado para o European Union Prize for Contemporary Architecture – Mies van der Rohe Award de 2019.
Arquitetura e construção
Comissariou a representação de Portugal na VIII Bienal de São Paulo em 2009, momento em que, nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, «elevou o nome de Portugal no panorama internacional da arquitetura». O Presidente recordou que Manuel Graça Dias foi condecorado em 2006 com a Ordem do Infante D. Henrique, «não apenas pelo conjunto da sua obra, mas por uma carreira dedicada também ao ensino, à crítica de arquitetura em jornais, programas de rádio e televisão, onde ensinava, falava e discutia com indisfarçável entusiasmo a paixão de uma vida».
A forma como concebia a disciplina que exerceu durante quatro décadas surge num excerto de uma entrevista reproduzida no catálogo Graça Dias + Egas Vieira – Projectos 1985-1995 (Ed. Estar): «Tem que resolver todas essas situações mas tem que acrescentar sempre qualquer coisa que fará parte da zona do ‘indizível’, do inútil, do que à primeira vista não serve para nada; isso é o que separa a arquitectura da construção. A construção também tem o ar condicionado, também tem que ter electricidade nas tomadas, também tem que dar para as pessoas se reunirem lá dentro e fazerem os seus trabalhos. Mas quando lá chegamos e não temos nenhuma compensação afectiva, quando não ligamos àquilo, quando não gostamos, é porque existe uma diferença entre arquitectura e construção».
Para lá da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, Manuel Graça Dias foi também professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa e na Universidade Autónoma de Lisboa. Escreveu para várias revistas da especialidade e, lembra agora a Universidade do Porto, era constantemente solicitado «para um vasto número de conferências, quer em Portugal quer no estrangeiro». Ao longo dos anos, colaborou em inúmeros programas televisivos e radiofónicos sobre arquitetura, como o Ver Artes/Arquitetura, na RTP2. Colaborou também com a TSF, foi crítico do Expresso e cronista do Público e dirigiu o Jornal Arquitectos entre 2009 e 2012. Escreveu vários livros, sempre num tom acessível e descomplexado, entre os quais Ao volante pela cidade: 10 Entrevistas de Arquitetura (1999), onde contribuiu para ‘educar’ o público português, partilhando uma nova forma de olhar para o espaço urbano: não apenas focando este ou aquele edifício, mas abarcando a cidade no seu conjunto, com as suas ruas, estradas, praças, comércio, automóveis, etc. Para Manuel Vicente, o seu primeiro mestre, Graça Dias era «um homem para quem a formação profissional não é um mister, tão só, mas, mais promiscuamente, uma chave para o entendimento do real e do(s) seu(s) rito(s)».
Um nó na garganta
Em abril de 2013, publicou no P3, do Público, um artigo onde lembrava os primeiros passos como arquiteto, ainda antes ser considerado um «pensador de cidades» com opiniões polémicas – a dada altura, ficou conhecido por defender as marquises e as chamadas casas dos emigrantes. «O que eu gostava mesmo era de ‘desenhar livremente’; com lápis, com caneta, com cores, com o que tivesse à mão, colecionando vistas, sobreposições, acidentes, deformações, insólitos bocados de arquiteturas existentes, cujos ‘alçados’ esborrachava em planos avivados pela marcação profunda de sombras plausíveis», escreveu.
Acabou por transpor todas essas cores da meninice da carreira para a forma como pensou a arquitetura. Curiosamente, foi no recato de um convento que encontrou o espaço que mais o emocionou: a capela de La Tourette de Le Corbusier, em Lyon, como contou na citada entrevista do Expresso. «É um convento, em Lyon que, junto à capela principal, tem um sítio com seis altares onde os monges aprendem a dar missa. É um sítio tão bonito! Foi a única vez que senti, perante a beleza, o que se descreve como o síndroma de Stendhal. Sentei-me no chão, sozinho, e durante meia hora fiquei maravilhado, com um nó na garganta».