Sentado numa caixa de vidro, Adolf Eichmann responde, impávido e sereno, às perguntas sobre o seu papel na máquina do Holocausto. Explica cada processo, cada folha assinada e cada um dos objetivos do Holocausto. Fá-lo sempre com voz calma e pensamento racional – estava simplesmente a cumprir o seu dever, alegou. O mundo inteiro ouve cada palavra dita pelo nacional-socialista – foi o primeiro julgamento a ser transmitido pela televisão e também o primeiro sobre as consequências do Holocausto na vida de milhões de pessoas. Eichmann foi condenado e tornou-se o rosto de uma expressão que ganhou fama mundial: a «banalidade do mal», da filósofa alemã judia Hannah Arendt, criada ppara servir a um ser humano que abandona toda a humanidade e entra numa lógica burocrática em que as ordens nunca são questionadas, mas escrupulosamente cumpridas. E as vidas deixam de ser pessoas para se transformarem em meros números numa folha de papel.
Condenado por crimes de guerra e contra a humanidade, a sentença de Eichmann não foi outra que não a da pena de morte por enforcamento. Nos primeiros minutos de 1 de junho de 1962, o nazi alemão foi levado até uma sala na prisão israelita de Ramla e enforcado. Do outro lado do vidro estava Rafi Eitan, então agente da Mossad e líder da missão que capturou o nazi radicado em Buenos Aires, na Argentina. «Eichmann olhou para mim e disse: ‘O teu tempo para me seguires vai chegar, judeu’. E respondi: ‘Mas não hoje, Adolf, não hoje’», contou mais tarde Eitan, citado pelo jornalista de investigação britânico Gordon Thomas no livro Os Espiões de Gedeão: A História Secreta da Mossad. Se Eichmann foi julgado e condenado, muito se deveu ao agente.
Eitan faleceu esta semana, aos 92 anos de idade, no Centro Médico Ichilov, em Telavive, Israel. Foi militar, agente secreto, assessor de primeiros-ministros e, no final da sua vida, até escultor – criou mais de 100 esculturas, com muitas a fazerem hoje parte de coleções privadas e de galerias públicas. É encarado como um dos pais da comunidade de serviços secretos israelita e, na hora da sua morte, não faltaram elogios de quem exerce o poder no país de cinco milhões de pessoas. «Rafi estava entre os heróis dos serviços de informação do Estado de Israel por inúmeras missões em nome da segurança de Israel», disse o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, em comunicado, acrescentando que era um «amigo pessoal e próximo da família» Netanyahu. Por seu lado, o presidente israelita, Reuven Rivlin, caracterizou Eitan como um «corajoso combatente, cujas contribuições para a segurança do Estado de Israel serão ensinadas às gerações vindouras». «Rafi era um lutador nato que se agarrava às suas missões e fazia o que sabia estar certo. As nossas cabeças estão hoje curvadas em sua memória e despedimo-nos dele tristes e agradecidos», continuou o comunicado presidencial.
Eitan nasceu a 23 de novembro de 1926 no kibbutz de Ein Harod, na então Palestina sob controlo britânico, filho de judeus russos que tinham emigrado três anos antes. Ainda nem adolescente era já participava na Haganah, organização paramilitar israelita responsável por vários atentados terroristas contra britânicos e palestinianos. Contestava o domínio britânico e defendia, à semelhança do pai do sionismo, Theodor Herzl, que a Palestina deveria ser a nova Israel, expulsando os palestinianos se assim fosse necessário. Era tão dedicado que foi promovido para o braço de elite da organização, o Palmach, participando em atentados terroristas e atos de sabotagem. Num deles, que lhe veio a dar a alcunha de «Rafi, o malcheiroso», Eitan gatinhou pelos esgotos até chegar a uma estação de rádio britânica no Monte Carmel. Depois, plantou uma bomba e desapareceu do local antes que explodisse. Em paralelo, e ainda na adolescência, ajudou centenas de judeus a fugirem da perseguição nazi na Alemanha para a Palestina, encarado como passo fundamental para a criação do Estado judaico.
Na Guerra de Independência de Israel, em 1948, o recém-formado exército israelita conquistou território aos palestinianos, expulsando-os das suas terras e casas – o Nakba (a catástrofe) – e confrontou os exércitos árabes. Eitan combateu nas suas fileiras. Ficou ferido por duas vezes e com mazelas permanentes: perdeu uma parte significativa da sua audição. Por não estar apto a voltar para o campo de batalha, as chefias militares atribuíram-no a uma unidade de informações – estava assim dado o passo que iria marcar a sua carreira. Estudou na London School of Economics, no Reino Unido, e quando voltou entrou no Shin Bet, organização equivalente ao FBI norte-americano. Poucos anos depois, entrou na Mossad, onde iria permanecer por largas décadas.
Ainda antes de entrar na Mossad, Eitan participou como agente do Shin Bet numa operação de captura falhada. Em 1954, o israelita viajou para Paris, em França, para capturar um piloto israelita que espiava para o Egito. Apanharam-no e, com uma injeção, puseram-no inconsciente, levando-o para um avião, mas a dose da seringa foi tão forte que o piloto acabou por morrer e o seu corpo atirado do avião para o mar. O assassinato foi mantido em segredo durante décadas e Eitan nunca se arrependeu: «Nada do que fiz para completar a minha missão me incomoda».
A operação Eichmann
Os tribunais de Nuremberga, depois do fim da II Guerra Mundial, não foram suficientes para aplacar o sentimento de injustiça pela morte de seis milhões de judeus sob a ameaça de armas dos nazis. E, sabendo-o, os serviços secretos israelitas sempre estiveram atentos ao paradeiro de nazis que escaparam impunemente à destruição do III Reich, criando uma rede de informadores – a dispersão da comunidade judaica ajudou. Quando receberam a confirmação de que vários nazis estavam na Argentina, entre eles Adolf Eichmann e Josef Mengele, médico nazi responsável por experiências com judeus nos campos de concentração, algo tinha de ser feito.
Eitan, encarregado de capturar Eichmann, preferiu ignorar Mengele e dedicar-se a apenas uma captura – duas no mesmo dia obrigaria a uma operação ainda mais complexa e as probabilidades de falhar eram maiores. Mengele acabou por falecer de causas naturais sem nunca ter sido submetido à Justiça, mas o mesmo não aconteceu com Eichmann – conhecido na Argentina por Ricardo Klement. Com uma equipa de meia dúzia de agentes, Eitan preparou a operação ao pormenor: estudou as rotinas do nazi, como seria sedado, a logística para o manter cativo por vários dias e como retirá-lo do país latino-americano sem que as autoridades argentinas se apercebessem. Semanas depois, tudo estava preparado e só faltava a luz verde. Era maio de 1960.
Numa noite como qualquer outra, Eichmann saiu do autocarro que o levava do trabalho para casa e, do nada, dois agentes da Mossad agarram-no e sedaram-no com uma seringa. «Agarrei-o pelo pescoço com tanta força que vi os seus olhos esbugalharem», relembrou Eitan ao mesmo jornalista, referindo que se o tivesse sufocado com mais força o teria morto ali mesmo. Pegaram nele e levaram-no para um carro a poucos metros de distância, dirigindo-se para uma casa segura a três quilómetros de distância. Ninguém viu o que aconteceu, ninguém ouviu nada e, no local, apenas restaram os óculos que o antigo burocrata nazi usava.
Na casa, Eichmann foi mantido cativo por sete dias e interrogado consecutivamente até admitir que a sua identidade verdadeira não era Ricardo Klement, mas sim Adolf Eichmann. Sem dúvidas sobre a sua identidade, os agentes vestiram-no de membro da tripulação da companhia aérea El Al, obrigaram-no a beber uma garrafa inteira de whiskey para que não os denunciasse de tão bêbado e escoltaram-no até um avião – o verdadeiro membro da tripulação ficou para trás para não houvesse discrepâncias no manifesto de bordo. Eichamnn chegou a Telavive e foi de imediatamente encaminhado para uma prisão.
A Argentina, cujo regime fechava os olhos à presença de nazis no seu país e que teria até o apoio de padres católicos para salvaguardar os nazis, protestou pela violação da sua soberania, mas poucos foram aqueles que lhe prestaram atenção. As celebrações pela captura do nazi abafaram o conflito diplomático e Eichmann acabou por ser julgado e condenado. A operação tornou-se mundialmente conhecida e serviu de exemplo para tantas outras do género – o método de recolha de informações, o estudo das rotinas, o método de captura e a sua extração. A história da operação foi adaptada à grande tela em 2018 – Operation Finale, em que Eitan é interpretado pelo norte-americano Nick Kroll.
Uma vida de operações encobertas
Não foi a primeira nem a última operação em que Eitan se envolveu. Em 1964, Eitan apresentou uma proposta de assassinatos seletivos contra os ativistas palestinianos que tinham acabado de criar a Fatah, o núcleo forte da Organização para a Libertação da Palestina. Foi recusado, mas os assassinatos seletivos aconteceram nos anos que se seguiram, principalmente depois do atentado terrorista nos Jogos Olímpicos de Munique, na Alemanha. No mesmo ano, Eitan foi responsável por uma operação cujo objetivo era localizar e assassinar cientistas alemães que construíam mísseis para o regime egípcio de Abdel Nasser.
Em 1965, Eitan integrou uma comitiva de técnicos à central nuclear em Apollo, em Pittsburgh, EUA. Mais tarde, descobriu-se que 90 quilos de urânio tinham desaparecido – nessa altura Telavive queria tornar-se numa potência nuclear, o que veio a conseguir um ano depois com o primeiro teste. O roubo nunca foi desvendado, mas as agências de informação norte-americanas não tiveram dúvidas de que Eitan esteve envolvido – a coincidência era demasiada.
O agente da Mossad continuou a desenvolver operações encobertas até uma delas ter sido desvendada pelos serviços secretos norte-americanos. Eitan era o controlador de um analista de informação naval norte-americano, Jonathan Pollard, que lhe passou milhares de documentos confidenciais. Pollard foi detido sob acusações de espionagem e confessou as suas ligações com Israel, acabando sentenciado a prisão perpétua – saiu em liberdade condicional em 2015, depois de ter cumprido 30 anos de prisão. Washington e Telavive viveram uma das mais graves crises diplomáticas e Eitan chegou a ter mandados de captura em seu nome, ainda que a Mossad tenha garantido tratar-se de uma operação sem autorização. Com a sua identidade revelada nos jornais e conhecida por agências de informação, Eitan abandonou a vida de agente secreto para se dedicar ao aconselhamento político junto do antigo primeiro-ministro israelita Menachem Begin e, anos depois, acabou a gerir a empresa estatal Israel Chemicals até se reformar em 1993, então com 67 anos de idade.
Da reforma à vida política
Reformado, Eitan dedicou-se a projetos de construção civil em Cuba e depois decidiu entrar na vida política ao ser cabeça-de-lista do Partido dos Reformados israelita nas eleições legislativas de 2006. O partido entrou numa coligação governamental e o antigo agente assumiu a pasta de ministro dos Reformados, que acabou por abandonar em 2009.
Nos últimos anos, Eitan viveu uma vida mais afastada da política e dos serviços secretos, dedicando-se à escultura. Nenhuma das suas peças, ainda que em coleções privadas e galerias públicas, esteve à altura da sua capacidade para planear operações encobertas.
Eitan voltou a entrar no debate público ao enviar uma mensagem de apoio ao partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, que surpreendendo tudo e todos. «Estou certo de que se trabalharem de forma sábia, forte e, mais importante, realisticamente, que em vez de serem uma ‘alternativa para a Alemanha’ poderão tornar-se numa alternativa para toda a Europa», disse Eitan no vídeo. O AfD é conhecido por ter posições racistas, xenófobas e antissemitas, com muitos dos seus dirigentes a terem expresso comentários do género. «Todos em Israel apreciamos a vossa atitude perante o judaísmo», disse ainda na mensagem. O embaixador israelita na Alemanha, Jeremy Issacharoff, apressou-se a condenar as palavras de Eitan como «tristes e vergonhosas».