Um dos mais graves problemas de escrever crónicas sobre alemães é o espaço que se ocupa com as mais ligeiras frivolidades. Por exemplo, descrever um jogo que se disputou no primeiro dia de maio de 1910 faz-se com uma perna às costas até se esbarrar de frente com o nome do estádio como quem choca com a fachada da sede do município de Nuremberga: Telegraphenkaserne Stadium. Esfarela-se o nariz e apanha-se uma cãimbra na língua. Mas, com o orgulho ancestral dos Nibelungos, os teutónicos não facilitam, nunca facilitam. Cá por mim fazem bem. O Telegraphenkaserne Stadium, em Karlsruhe, limitou-se a ser o palco de um confronto de irmãos. E, como dizia o malicioso Dino Segrè, que passou à história pelas pilhérias que assinava com o pseudónimo de Pitigrilli, eram pior do que inimigos, eram irmãos.
Muito bem. Pitigrilli dizia que tinha escolhido esse nome porque era um homem que gostava de por os pontos nos ii. Ponho eu também os pontinhos no episódio. O Phönix Karlsruhe e o Karlsruhe Füssballverein estavam frente a frente carregando nos ombros essa velha e inevitável tradição de haver sempre um clube de pobres e um clube de ricos na mesma cidade, odiando-se como só os irmãos se conseguem odiar. Decidia-se o título de campeão da Imperial Alemanha do dr. Topsius, d’A Relíquia do divino Eça, Raposão, prostituta Mary, Titi e tudo e tudo, e houve mesmo quem filmasse o acontecimento, filme esse que durou até hoje. O grande protagonista da película é Gottfried Erik Fuchs, 21 anos, judeu nascido nos arredores de Karsruhe,_Baden-Württenberg, autor de um dos golos da vitória dos ricos do Karlsruhe Füssballlverein, e não digam que não alertei para o diabo destas crónicas essencialmente germânicas. No «supporting role», como gostam de dizer os apreciadores de Óscares, não estava nenhum Oskar mas estava um Julius: Julius Hirsch, sétimo filho de um comerciante judeu da vizinha Achern, 18 anos, que jogava no clube desde os 10. Ligeiramente mais velho, já com 22 completos, completava o trio Friedrich Förderer. Ou talvez não completasse verdadeiramente._Afinal, não era judeu como os seus outros dois companheiros e isso viria a fazer uma grande diferença na sua vida.
Gottfried Fuchs e Julius Hirsch foram os primeiros judeus a serem chamados à seleção da Alemanha. Dois anos após a escaldante tarde do Telegraphenkaserne Stadium, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, os alemães bateram a Rússia com um muito germânico massacre: 16-0. Fuchs, Hirsh e Förderer faziam parte da equipa. O primeiro marcou dez golos; Friederich marcou quatro;_Julius não fez o gosto ao pé mas tratou de esculachar todos os russos que lhe passaram por perto com dribles estonteantes.
«Jovens, que jovens eram…», suspiraria Pessoa. A I Grande Guerra não os poupou às trincheiras. Poupou-os, por seu lado, o destino à morte. Regressaram como heróis e foram levados ao colo pela História até aquele pináculo da glória ao qual só ascendem os que os deuses amam. Ao mesmo tempo que uma sinistra sombra negra se erguia no horizonte pronta para apagar de vez as luzes que quase os cegaram.
Werner Skrentny escreveu um livro sobre Julius Hirsch: Julius Hirsch. Nationalspieler. Ermordet – O Jogador Assassinado. Nele ficamos a saber que a mãe, Emma, que já tinha dado à luz seis crianças vivas e outras tantas mortas, estava internada num sanatório à data do seu parto. Fora-lhe diagnosticada uma demência profunda. Julius nasceu com os olhos anormalmente separados um do outro o que lhe dava um certo ar de peixe fora de água mas talvez lhe permitisse a visão periférica que fez parte dos pormenores do seu imenso talento.
Se Hirsch era um remediado, Fuchs, pertencente a uma família que dominava o negócio da madeira, era um abastado. Em abril de 1933, Friedrich Förderer definitivamente não completava mais trio algum. Não sendo judeu não ficou abrangido pela resolução tomada pelos clubes alemães de cooperarem com o grande esforço desenvolvido pelo Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei dispensando todos os seus atletas de origem judia. Hitler tinha sido nomeado chanceler em janeiro.
Gotfried fugiu para Paris;_Julius também. Instalou-se em casa da irmã, Rosa. Gotfried acabaria por morrer em Montreal, no Canadá, em 1972; Julius não aguentou muito tempo no 16 éme arrondissement, onde era vizinho de Fuchs. Preocupado com o que estaria a acontecer à mulher, Ellen, apanhou um comboio de regresso à Alemanha. Em 1943, estava consignado a um refúgio para judeus na Friedrich Strasse de Karlsruhe. Tinha, pregada na farda baça, a estrela de David. No dia do 15.º aniversário da sua filha Esther, um oficial das SS chamado Phillip Hass, apresentou-se no refúgio com uma lista de nomes. Um deles era o de Hirsch. Julius e Esther choraram juntos. Depois o abraço estilhaçou-se como vidro. Hass saiu com ele pela porta e nunca mais se ouviu falar de Julius Hirsh, o ‘wunderkind’.
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