Há ícones que marcam gerações inteiras como se fossem selos brancos, marcas de água impressas nas nossas memórias e das quais não nos conseguimos libertar. O ‘Menino da Lágrima’ é uma dessas imagens, normalmente apresentada à nossa existência sob a forma de um quadro na sala-de-estar de uma avó, ou de uma tia afastada, ou de uma ama da nossa infância, sempre pendurado por cima da poltrona e tendo como pano de fundo um papel de parede tão kitsch quanto possível, como kitsch é o próprio quadro e todos os bibelôs que por norma pululam nas pequenas mesas em redor de uma carpete verde. Também ela kitsch, como não poderia deixar de ser. Se nessas memórias remotas o avô ainda for vivo, ou se com a tia afastada vier por afinidade um tio ainda mais afastado, ou se a ama da nossa infância for casada, é provável que haja mais uma poltrona na sala e por cima dessa poltrona esteja pendurado um galhardete com o símbolo do Benfica. Um ‘Menino da Lágrima’. Uma águia de asas abertas em cima de uma roda de bicicleta. E uma carpete. Verde, se bem se recordam.
João Félix ainda não é bem um jogador completo mas já é um futebolista da cabeça aos pés. Tudo nele grita ‘projeto inacabado’ – do aparelho nos dentes às borbulhas no rosto; do tronco franzino às madeixas pintadas em semana de clássico; da ingenuidade de uma resposta genuinamente infantil (ou infantilmente genuína?) perante uma plateia de crianças, à saudável sobranceria de um festejo provocador perante os adeptos do clube que o ostracizou. Tudo em João Félix é um hino à adolescência, mas é em simultâneo uma explosão de talento à espera de acontecer a cada segundo que passa. Uma vida vivida em velocidade supersónica e com uma voracidade típica de quem quer engolir o Mundo! Há pouco mais de um ano não podia conduzir, não podia votar, não podia entrar numa sala de cinema para ver um filme de terror, não podia beber uma cerveja numa esplanada. Com a maioridade chegaram todos esses direitos mas chegou também a hora de começar a escrever história em letras douradas. Nunca ninguém marcara ao FC Porto e ao Sporting no ano de estreia. Nunca ninguém marcara no Dragão e em Alvalade no ano de estreia. Nunca ninguém marcara três golos num jogo europeu no ano de estreia. Nunca ninguém. Até que um dia alguém…
Esqueçamos Cristiano Ronaldo porque CR7 é como aquele buraco negro que a humanidade conseguiu esta semana captar num momento Kodak de 44 milhões de euros a fundo perdido – tem uma dimensão tão esmagadora e uma gravidade tão forte que ‘engole’ tudo à sua volta. Portanto, se alguém quiser aniquilar toda e qualquer hipótese de ver João Félix alcançar ou superar quaisquer expectativas criadas, façam favor de o comparar ao astro da Juventus e é garantido que jamais atingirá o patamar preconizado. Para bem do miúdo, não o façamos. Há patamares aos quais não se deve aspirar, heresias que não se devem cometer e ambições que não devemos alimentar. Dito isto, centremo-nos nos factos de forma a percebermos que estamos realmente na presença de um jovem muito especial. Precoce, certamente, mas acima de tudo especial. Na época em que se estreou com 18 anos, João Félix soma 15 golos e tem pelo menos mais 7 jogos para disputar. Em semelhante etapa da carreira, Messi marcou 8 golos no Barcelona, Van Basten marcou 13 no Ajax e Ibrahimovic chegou aos 14 no Malmö. Mbappé no Mónaco e Raúl no Real Madrid chegaram aos 26, mas Ronaldo Nazário pulveriza todas as marcas de precocidade goleadora: 35 golos na época dos seus 18 anos no PSV. O puto está, como facilmente se percebe, em excelente companhia.
O hat-trick desta semana, marcado aos 19 anos e 5 meses frente ao Eintracht Frankfurt, fez de João Félix o jogador mais jovem de sempre a alcançar semelhante feito na segunda prova europeia de clubes desde que esta assumiu o modelo de Liga Europa. Marko Pjaca demorou mais dois meses, Paco Alcácer mais um ano, Harry Kane e Romelu Lukaku mais dois anos. Menos um mês do que João Félix demorou Kun Agüero, que detém o recorde absoluto se alargarmos o espetro da análise aos tempos em que a prova assumia o formato e a designação de Taça UEFA. João Félix, uma vez mais, a rodear-se das melhores companhias possíveis. Olhemos agora um pouco para dentro, para o contexto do clube onde o jovem evolui, e percebemos também que a lista onde acaba de entrar está repleta de gente ilustre – hat-trick europeu pelo Benfica era coisa que não se via desde 1992, altura em que António Pacheco brindou os modestos eslovenos do MNK Izola com receita idêntica à de João Félix na passada quinta-feira. Antes disso, Rui Jordão em 1975, Nené em 1975 e 1972, Eusébio em 1970 e 1965, Torres em 1968 e José Augusto em 1965. Que raio de hábito elitista e repetitivo, este de João Félix só querer estar entre gente tão superlativamente distinta…
João Félix marcou o terceiro e chorou. O menino da lágrima de águia ao peito no maior e mais verde tapete. Porque teve noção de que atingiu um patamar de sonho. Porque se lembrou dos sacrifícios do seu pai nas longas viagens diárias para poder treinar. Porque sentiu a vibração das bancadas da Luz. Porque ultrapassou rapidamente um momento de menor fulgor exibicional. Porque o ídolo Rui Costa também ali chorou. Por tudo isto, por nada disto, porque sim e apenas porque sim, porque os homens também choram e o miúdo está feito um homem! Só o João pode responder a esta questão: porque chorou o João? Neste momento é o ‘Menino da Lágrima’, obra incontornável de Giovanni Bragolin. Mas todos esperamos que ascenda a patamares de arte mais refinada. Está lá tudo. Mas mesmo tudo. E a magia com que pincela os relvados permite sonhar que o Bragolin se transforme num Da Vinci. Num Picasso. Num Van Gogh. Num desses quadros que não se penduram por cima da poltrona na casa da tia afastada.