Há cinco meses contestado nas ruas, o Presidente francês, Emmanuel Macron, reagiu ao incêndio da Catedral de Notre-Dame, em Paris, tecendo um paralelismo entre a destruição de um dos principais patrimónios da Humanidade e a convulsão política que tem marcado o país. «Acredito profundamente que depende de nós transformar esta catástrofe numa oportunidade para nos aproximarmos e pensarmos sobre o que somos e o que precisamos de ser, para nos melhorarmos», disse Macron num discurso de Estado transmitido um dia depois do incêndio, apelando à unidade nacional numa sociedade cada vez mais dividida.
Se há símbolo que une os franceses é a catedral de Notre-Dame, dedicada à mãe de Jesus e construída nas raízes da França, e Macron sabe-o. «Depois de tempos de dificuldades, o tempo da reflexão e da ação virá, mas não os misturemos, não caiamos na armadilha da precipitação», continuou o chefe de Estado. Apelou à calma e garantiu que tempos mais calmos virão.
O discurso de terça-feira deveria ter sido proferido na segunda, mas o incêndio impediu-o. Poucos minutos faltavam para Macron se dirigir à nação francesa sobre os protestos dos coletes amarelos e medidas que pretendia apresentar quando a catedral começou a arder – por volta das 19 horas (18 horas em Portugal). O líder francês adiou o discurso e três horas depois pisava as escadarias, enquanto os bombeiros combatiam o incêndio.
«A Notre-Dame de Paris está em chamas. Emoção de uma nação inteira. Penso em todos os franceses. Como todos os nossos compatriotas, estou triste esta noite por ver esta parte de nós arder», reagiu no Twitter nos minutos imediatos ao deflagrar do incêndio. No terreno, perante uma multidão de jornalistas, o chefe de Estado foi ainda mais lacónico perante uma nação em choque: «A história [de França], a nossa literatura, o epicentro da nossa vida, a catedral de cada francês» estava a arder e prometeu reconstruí-la por «ser o que a nossa história merece, e por ser o nosso destino».
O combate dos 500 bombeiros da capital parisiense durou até de madrugada, com a cúpula da catedral a ficar totalmente destruída e o pináculo – símbolo da ligação com Deus – a desabar. Nas ruas próximas da obra-prima da arte gótica, centenas de franceses e turistas olhavam incrédulos para as chamas, com muitos a porem as mãos na cabeça e até a deixarem cair algumas lágrimas.
As autoridades conseguiram tirar a tempo inúmeros tesouros guardados na catedral, como foi o caso dos fragmentos do crucifixo de Cristo, um prego do Santo Sepulcro e a coroa do rei francês Luís IX, que remonta a 1238. Além destes tesouros, foram salvas 16 estátuas (tinham sido retiradas pouco antes) e três vitrais em forma de rosácea conseguiram sobreviver ao calor das chamas.
Nos esforços de retirada dos tesouros muito contribuiu o conhecimento pormenorizado de onde cada um estava do reitor da catedral, o padre Patrick Chauvet, e a ação intrépida do capelão dos bombeiros Jean-Marc Fournier, que, entre o fumo e as chamas, entrou na catedral para retirar as relíquias. O primeiro foi elogiado, o segundo foi aclamado herói nacional.
«O padre Fournier é um herói absoluto. Não mostrou nenhum medo e entrou [no edifício] imediatamente na direção das relíquias, no interior da catedral, garantindo que seriam salvas», disse uma fonte dos serviços de emergência à televisão britânica Sky News. Por ano, tanto a catedral como os seus tesouros são visitados por 13 milhões de pessoas.
No rescaldo do incêndio, as autoridades francesas abriram um inquérito «por destruição involuntária causada pelo fogo» e interrogaram os 15 trabalhadores da empresa de restauro que trabalhavam no telhado da catedral pouco antes desta arder – abandonaram-na antes do incêndio. A hipótese de fogo posto ou de atentado terrorista (ver páginas 50 e 51) foram descartadas pelas autoridades, com tudo a indicar que se tenha tratado de um incêndio involuntário na zona do restauro. Para os bombeiros, o fogo terá começado no sótão da catedral e por causa dos trabalhos de restauro, com o comandante dos bombeiros parisienses, general Jean-Claude Gallet, a garantir que a estrutura do edifício foi «salva e preservada na sua globalidade».
As chamas ainda avançavam pelo edifício quando as reações de chefes de Estado começaram a surgir. «A Nossa Senhora de Paris é um símbolo da França e da nossa cultura europeia», reagiu a chanceler alemã, Angela Merkel, no Twitter, enquanto o Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, disse que a «Notre-Dame de Paris é a Notre-Dame de toda a Europa». «O povo de França e os serviços de emergência que combatem o terrível incêndio em Notre-Dame estão no meu pensamento», reagiu a primeira-ministra britânica, Theresa May. Já o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deu que falar com a sua reação: além de mostrar consternação, avançou com conselhos aos bombeiros. «É horrível assistir ao grande fogo na catedral de Notre-Dame em Paris. Talvez se possa usar meios aéreos para o apagar. É preciso agir depressa!», escreveu Trump no Twitter, uma ideia que poderia pôr em causa a segurança da catedral se fosse posta em prática. Por sua vez, o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, ecoou as palavras dos seus congéneres, falando numa «dor que nos trespassa o olhar e logo nos marca a alma».
Uma dor que se junta a tantos outros traumas presentes na sociedade francesa, com a violência nas ruas entre coletes amarelos e a Polícia a ser um deles. Para François Heisbourg, analista do International Institute for Strategic Studies, em declarações ao Guardian, a tragédia revelou um «país que tem sofrido uma acumulação de traumas. França está, política e socialmente, num estado muito frágil». «Ele [Macron] mostrou os reflexos certos ao adiar o planeado discurso e esta catástrofe certamente que lhe oferece a oportunidade para desempenhar um papel presidencial para unir a nação», explicou o analista. E assim tem feito Macron ao dar ênfase a uma profunda transformação da sociedade francesa, de reformas prometidas ainda durante a sua campanha eleitoral. Simbolicamente, a catástrofe dá-lhe a hipótese de tecer paralelismos entre a reconstrução da catedral e a do país, reconquistando o papel que em tempos a França teve tanto na Europa como na União Europeia antes da crise económico-financeira. Uma oportunidade, explica Bruno Tertrais, da Foundation for Strategic Research, que dará por agora um «momento Mitteraniano» – referência ao antigo Presidente francês François Mitterand – para «deixar a sua marca em Paris». Estes momentos duram pouco tempo e Macron agarrou-o com as duas mãos, prometendo a reconstrução em cinco anos.
Por agora, a ferida causada pelo incêndio demorará a sarar, mas já há quem tenha avançado com donativos de milhões para se reconstruir e restaurar a catedral, numa onda de solidariedade que poucos têm memória. Mais de mil milhões de euros já foram recolhidos pelas autoridades. A família herdeira do grupo L’Oreal, Bettencourt-Meyers, anunciou a doação de 200 milhões de euros, com a família Arnaulte, detentora da Louis Vuitton, Dior, Bvlgari, a doar outros 200 milhões. Também a Apple e a Disney fizeram doações, não esquecendo a petrolífera Total e a família Penault, donas da Gucci, que doou 100 milhões. Cidadãos e famílias francesas da classe média também deram o que podiam. Bancos como o BNP Paribas, Crédit Mutuel e CIC também se juntaram ao esforço de solidariedade.
Todo este esforço levantou uma nova polémica demonstrativa das divisões na sociedade francesa, com críticos a acusarem as empresas de «operação de relações públicas», como foi o caso de Manon Aubry, cabeça-de-lista da França Insubmissa às europeias do próximo mês. «Se podem dar dezenas de milhões para se reconstruir a Notre-Dame, parem de nos dizer que não há dinheiro para atender às necessidades sociais», criticou o secretário-geral da CGT, Philipe Martinez, em declarações à France Info. «Há milionários que têm muito dinheiro. Isso mostra as desigualdades que denunciamos regularmente», acrescentou o dirigente sindical.