Verdade desportiva. Expressão em voga, espécie de slogan de campanha eleitoral, palavras universalmente aceites na busca de um futebol melhor, um jogo mais puro, uma modalidade mais ‘verdadeira’, passe a grosseira redundância. Uma página de jornal não chega para desmontar o mito do VAR, essa grotesca e absoluta falácia da vídeo-arbitragem. Não chega uma página, não chega um jornal inteiro e não chegaria uma biblioteca de cinco andares – porque os mitos não se desmontam apenas com palavras derramadas para o papel, por mais acutilantes e bem intencionadas que essas possam ser. Não, os mitos levam anos a destruir, por vezes décadas. Gerações inteiras que vão acordando para a realidade e ousam enfrentar esses mitos que entretanto se transformam em dogmas e esses dogmas que entretanto se transformam em verdades absolutas. Lá está, voltamos ao mesmo: a verdade. Desportiva. Absoluta. Aquela que nos querem fazer engolir à força e à custa do assassinato público do maior espetáculo do Mundo. Como se a verdade fosse uma coisa objetiva! Pobres e incautos homens da bola que em pleno século XXI ainda acreditam em semelhante dislate…
O futebol é muito mais do que um jogo. É uma questão de fé. Uma religião no verdadeiro sentido da palavra. Deuses e semideuses nascem, vivem e morrem no imaginário do povo. Os adeptos unem-se em multidões que idolatram cores e veneram símbolos de forma incondicional, dedicando as suas existências a uma doutrina de devoção sem limites. Refutam qualquer teoria que desvalorize ou conteste o seu clube, professam argumentos absolutamente indefensáveis e cedem à paixão em detrimento da razão em todos os momentos. Sem exceção. Ao ponto de partirem para a violência como se fosse algo perfeitamente normal. Tudo somado, tudo espremido, uma verdadeira religião com tudo aquilo que esta possa ter de bom e de mau. Nem mais nem menos do que isso. Querer reduzir o futebol a um mero jogo não é apenas revelar um total desconhecimento dos factos: é uma absoluta ignorância perante um fenómeno profundamente fraturante que logrou mudar o Mundo ao longo do último século e meio.
Sendo o futebol uma religião – premissa sobejamente demonstrada no parágrafo anterior – não podemos analisar o fenómeno ignorando a mais perigosa de todas as ideias para a fé: a ideia de que a verdade é subjetiva. Quem a defende não sou eu, é o mais influente filósofo da era moderna. Eu limito-me nestas linhas a recordar o relativismo introduzido por Immanuel Kant no século XVIII e que dominou o pensamento intelectual no século XX, mantendo-se absolutamente atual nos dias que correm. Simples: toda a verdade é subjetiva. E se esta ideia – repito, perigosíssima para a fé – é aceite na vida de um modo geral, muito mais terá de ser aceite no futebol, onde até as regras são subjetivas, quanto mais a verdade! Na vida, por exemplo, uma mão é uma mão. Este substantivo feminino pode ter 30 significados distintos mas uma mão não deixa de ser uma mão, a ‘extremidade do braço humano a partir do pulso, que serve para o tato e apreensão dos objetos’. Já no futebol, uma mão é uma mão mas… temos a mão na bola e a bola na mão; a mão intencional e a mão inadvertida; a mão que aumenta o volume do corpo e a mão que se mantém junto ao tronco; a mão à queima-roupa e a mão evitável perante a distância do remate; a mão atrás das costas, a mão que protege o rosto, a mão que é alvo de um ressalto, a mão que se apoia no chão e a mão do movimento em queda. Todas elas com uma tremenda carga de subjetividade que VAR nenhum no mundo conseguirá eliminar. O mesmo se aplica a inúmeros outros conceitos subjetivos no futebol, como o contacto, a intenção ou a intensidade. Nada nem ninguém conseguirá transformar o futebol em objetividade, isso não existe. Porque o futebol é fé. Porque a verdade é subjetiva. E porque é nesse eterno limbo entre a emoção e a razão que reside a beleza do desporto-rei.
O VAR é, nada mais nada menos, do que o homem a querer assumir o papel de Deus. O homem a querer ascender a um patamar de superioridade que não tem, nunca teve e nunca terá. O VAR é o homem em toda a sua arrogância e prepotência, toda a sua presunção de que não há limites para aquilo que consegue alcançar – nem sequer para a objetividade de um jogo que é, na sua génese, totalmente subjetivo! É o homem a querer assumir um poder discricionário absoluto para usar a seu bel-prazer e em função de cada momento. É o homem a tentar legitimar todos os seus erros e a tentar fingir que não é falível, quando o homem nada mais é do que isso mesmo: falível. Através de uma tecnologia falaciosa, manipuladora, mentirosa e repleta de limitações, o VAR é apenas o homem a querer contrariar o relativismo, transformando verdades subjetivas em (in)verdades objetivas em função dos seus próprios interesses. O VAR é o homem a mostrar os seus tiques ditatoriais e absolutistas. É o homem a querer limitar as ações dos restantes impondo a sua vontade, a sua verdade absoluta. O VAR é a antítese de tudo o que o futebol simboliza: liberdade, magia, traquinice, capacidade de fintar não só os adversários mas também as regras.
Há mais verdade no golo de Maradona com a mão frente à Inglaterra no Mundial de 1986 do que em todas as decisões certas e erradas do VAR nestes quase dois anos de período de testes. Aquele golo na Cidade do México, aquele gesto matreiro de ‘El Pibe’, é a coisa mais verdadeira que alguma vez vimos num relvado: porque é puro, é intuitivo, é cruel, é visceralmente humano, é intencional por parte de um mágico que a todos iludiu sem que ninguém sequer se atrevesse a acusar Ali Bin Nasser de validar o golo em função de interesses ocultos. Porquê? Porque aquele momento no Estádio Azteca, aquela enorme mentira, foi um momento de pura verdade. Subjetiva, sempre. Mas verdade. Porque o futebol não mente. Pode ser injusto, impiedoso, mau, doloroso, em tudo semelhante às agruras da vida real. Mas não mente. Dentro daquelas quatro linhas não há mentira: há jogadores, bola, árbitro e jogo. Não há mentira, essa só existe cá fora. No mundo dos homens que queriam ser deuses esquecendo-se de que os deuses só existem dentro do campo…