Nasceu rapaz numa fileira de raparigas. Escreveu poemas. Foi à baliza. E ela, dada também aos poemas, viu-o no campo do América numa tarde suave de 1913: «Foi sob o sol azul, ao louro de Maio/que um dia te encontrei, formoso como Apolo/E o meu amor nasceu num luminoso raio/como brota semente à humidade do solo».
Sim, talvez poeta atraia poeta na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, tal como acontece com a matéria de Newton. E poeta atraiu poeta.
Vocês sabem que Desmond Morris, no seu livro monumental, A_Tribo do Futebol, diz que no futebol os clubes que usam camisolas castanhas não existem? É a cor impossível. Os brasileiros gostam de lhe chamar marrom num toquezinho afrancesado que lhes vem de uma certa vaidade classista de um Rio de Janeiro entregue às elites do início do século passado. Pois, no bairro da Tijuca, havia um clube que usava camisolas marrom: era o Haddock Lobo Football Club. Depois fundiu-se com o América. Foi lá que_Marcos Carneiro de Mendonça que vivia no Solar dos Abacaxis, ali ao Cosme_Velho, edifício distinto da cidade Princesinha do Mar, começou a encantar meninas com o seu estilo que Edilberto Coutinho descreveu assim: «Goleiro, doublé de estudante universitário, rapaz culto, estudioso da História, a própria encarnação do ideal grego e do intelectual-atleta».
Marcos pagava cinco mil réis para jogar. O clube só dava a bola e as instalações. A farda era por conta dos jogadores e ele era a elegância em pessoa. Camisa branca, calções brancos, uma faixa branca em volta de cada chuteira como se fossem polainas de lorde da Ordem da Jarreteira. Em volta da cintura uma fita de pano: roxa. Os jornalistas gostaram demais daquela fitinha. Marcos Carneiro de Mendonça passou a ser o Fitinha Roxa.
Sempre cavalheiro desde a sua infância em Cataguases. Uma vez, em Inglaterra, os adversários britânicos do Corinthians começaram a bater palmas às suas defesas distintas, ajanotadas, em pleno relvado. Ele esboçava uma vénia e defendia mais e mais.
Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, filha do engenheiro José Joaquim de Queiroz, pioneiro da indústria siderúrgica brasileira foi a Paris em 1911 publicar um livro. Queria escrever poesia e alguém lhe disse que no Rio de Janeiro não valia a pena. Só na Europa. Quando regressou, a rapariguinha trouxe os exemplares impressos de Esperanças. E bolas de futebol. João do_Rio leu e disse: «Ou estes versos não são desta criança, ou esta criança é uma Shelley tropical».
Percy Shelley nunca escreveu poemas sobre futebol mas Anna Amélia, dizem os mestres, introduziu o futebol na poesia do Brasil com O Salto, inspirado num Marcos alado, alvo, voando com aqueles braços que mais pareciam asas que Deus se esqueceu de acabar: «Como um deus a baixar do_Olimpo, airoso e lépido/tocaste o solo, enfim, glorioso, ardente, intrépido/belo na perfeição da grega e antiga plástica».
Em 1914, Marcos de Mendonça zangou-se com o América e passou para o Fluminense. Nas Laranjeiras seria tudo. Até presidente. Levou consigo o movimento encantatório das mulheres que sentiam os olhos humedecidos ao ver o Fitinha Roxa em contraluz, pairando no caminho da bola. O cronista social mais famoso da época, Peregrino Junior, não perdia pitada do que se passava na arquibancada do Fluminense: «Um deslumbramento em cor-de-rosa. Bouquets de flores seguem Marcos de Mendonça».
Foi o primeiro guarda-redes da seleção brasileira, venceu os campeonatos sul-americanos de 1919 e 1922, deixou de vez a fitinha roxa e passou a gerir os negócios do pai de Anna Amélia, com quem casou, a Usina Esperança, tornou-se historiador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, estudou profundamente o Marquês de Pombal, publicou livros atrás de livros, entre os quais O Marquês de Pombal e o Brasil e Amazónia na Época Pombalina. Anna ensinava aos operários da usina o jogo dos patrões, prestava-lhes orientações técnicas, passou a ser mais do futebol do que o marido.
Viveu apaixonada pelo Fitinha Roxa. Não deixou de lhe dedicar poemas. Ou talvez os dedicasse a ambos: «Como um guerreiro grego, após uma vitória/trazia à bem-amada a coroa de louro/tu me vieste trazer esta medalha de ouro/símbolo do fulgor que auréola a tua glória». Dizia-se parnasianamente perdida por ele. E ele, preso nos versos, no voo irretocável de um pássaro incompleto, todo branco, completamente branco, de uma brancura quase roxa…