As palavras têm uma vida própria e os seus significados vão-se alterando. A forma como essas alterações têm lugar são imagem, muitas vezes, das nossas preocupações, das definições de civilização que nos guiam. A afirmação de um sentido no chamado senso-comum é a melhor forma de afinar e compreender os medos e as ânsias de uma população.
A mais intrigante palavra de horizonte religioso transportada para a linguagem coloquial, e que revela os apriorismos que temos em relação ao universo religioso é, obviamente, a palavra fundamentalismo. Fundamentalista passou a ser equivalente de terrorista. E esta rotação de significado, de um mundo ligado ao que de fundamental uma fé tem, os seus textos base, para um quadro de desgraça e de destruição, é uma leitura neo-positivista que coloca uma etiqueta de erro civilizacional a todos aqueles, muçulmanos, ou não, que não aderirem 100% a uma forma de ver o mundo: laicizada e sem a necessidade de um motor divino que explique o seu devir. O Fundamentalista passa a ser todo o inimigo da visão ocidentalizada do mundo.
Um muçulmano fundamentalista é um muçulmano que segue o seu Texto Sagrado como base da visão do mundo e da organização social. Este, não faz necessariamente atentados terroristas. O mesmo se poderia dizer de um cristão fundamentalista: aquele cristão que usa o texto bíblico como base inquestionável da sua fé e da gestão do seu quotidiano.
O mesmo se passa com uma em tudo semelhante palavra: ortodoxo. Esta tem, ainda, a peculiar característica de ter mesmo passado para o léxico específico do tratamento das religiões, baralhando tudo. Um cristão ortodoxo não é um cristão que segue a ortodoxia, a ortopraxis, do cristianismo, tanto mais que ela não existe… Para o conjunto dos cristianismos, um cristão ortodoxo é um ‘cristão de leste’.
No caso judaico, a situação ganha contornos ainda mais complexos: um judeu ortodoxo pertence ao grupo lato maioritário, cumpridor das regras da Lei Mosaica, mas integrados nas sociedades que pertencem. Quando se falava num judeu ortodoxo, no século XIX ou mesmo em grande parte do XX, era necessário identificar a nacionalidade, a tradição cultural a linhagem teológica. Hoje, numa linguagem rápida de senso comum, um judeu ortodoxo é apenas um homem de longas e estranhas suíças a despontar por debaixo de um chapéu vindo de tempos oitocentistas. Foi necessário criar o judeu ultraortodoxo para diferenciar a realidade, o qual passou a ser o equivalente, em termos de perceção, ao muçulmano fundamentalista.
Perdemos estas nuances, mas ganhámos em rancor e em ódio. Todos estes usos passaram a ser continentes poderosíssimos de violência. O resvalar destas palavras para este quadro maniqueísta é imagem de onde anda a nossa cabeça: desgraça e sangue. Pouco menos.
Paulo Mendes Pinto
Área das Ciências das Religiões da Universidade Lusófona