Quarenta e cinco anos depois, voltou a celebrar-se Abril – mas ainda sem a depuração que permita separar o trigo do joio que infestou a seara da democracia naqueles anos em que o país mudou.
Que não se poupe nas homenagens e nas honrarias devidas aos que saíram das Caldas da Rainha no dia 16 de Março; ao destemor de Salgueiro Maia na Ribeira das Naus e à humildade do regresso a Santarém, após cumprida a missão; ao povo anónimo, que mostrou de que lado estava o país inteiro; ao Grupo dos 9, que resgatou os cravos da liberdade aos que a tinham querido subverter; a ‘Soares e Zenha, não há quem os detenha’; a Sá Carneiro e Amaro da Costa, que ajudaram o PS a enfrentar o totalitarismo; aos bravos constituintes que, sessão a sessão, lutaram para aprovar a Lei Fundamental; aos que se bateram nas ruas contra os que não queriam que tivéssemos eleições livres. São esses os heróis!
Sempre que evocamos aqueles tempos, custa ver no palco da glória os que, por falta de cabeça, calculismo ou desonestidade, traíram os ideais de Abril, caucionando prisões arbitrárias e até crimes de sangue. Esses não podem continuar a colher os louros de que só são merecedores os que continuaram aquele ‘dia inicial inteiro e limpo’.
Não defendo que se retire quem quer que seja das fotografias. Em todas as revoluções há bons e maus, heróis puros e puros oportunistas, que se misturam ao acaso nos locais onde o principal se decide e tudo se regista.
Todos têm direito ao seu lugar nas fotografias, mas manda a verdade que estejam lá com o rótulo que lhes compete, de acordo com o que fizeram ou deixaram que fosse feito em seu nome.
No acerto da História que urge fazer, haverá que retirar distinções que não são merecidas, porque não pode continuar a fazer-se tábua rasa de tudo quanto se passou nas semanas, meses e anos que se seguiram ao dia libertador.
Sabe-se quem foram os que tentaram substituir um totalitarismo obsoleto por outro de cariz diferente, igualmente caduco, mas continua a haver relutância em dizer quem fez o quê – pelo que uma parte de Abril está por cumprir: a da liberdade para falar sem medos.
O respeito pela História impõe que, de cada vez que se fala da revolução, se esclareça: «Sim, é verdade que o 25 de Abril trouxe a liberdade, mas foi necessário um 25 de Novembro para resgatar os militares e a sociedade civil do inferno para onde os tinham empurrado os que traíram as promessas feitas ao país».
É por isso que não pode permitir-se que Otelo, Vasco Gonçalves e Cunhal continuem a ser medidos pela mesma bitola de Melo Antunes, Ramalho Eanes e Mário Soares, sem que se diga às novas gerações que só estes lutaram pela democracia, e que os primeiros tudo fizeram para a liquidar.
E é também por essa razão que é urgente retirar da galeria dos heróis os que autorizaram as prisões arbitrárias, as ocupações selvagens, as bombas, as balas e os assassinatos, preferindo a violência irracional ao convívio democrático, no respeito por quem pensa de modo diferente.