Tirou-me um peso de cima

De facto, ser médico não é só pedir exames complementares mais ou menos ‘sofisticados’, fazer diagnósticos dentro do maior rigor científico, receitar medicamentos ou registar indicadores. 

Com os anos de serviço que já tenho, chego à conclusão de que é bem verdade aquilo que aprendi na faculdade e o que ouvi dizer aos mais antigos, nomeadamente ao meu pai, sobre o que é ser médico no verdadeiro sentido da palavra. 

De facto, ser médico não é só pedir exames complementares mais ou menos ‘sofisticados’, fazer diagnósticos dentro do maior rigor científico, receitar medicamentos ou registar indicadores. 

É muito mais do que isso. 

É ter uma disponibilidade total para servir o doente, para o poder ouvir em qualquer momento e ser capaz de ‘quebrar o protocolo’ para o acalmar quando este o procura em horas de aflição. É isto que nos distingue dos outros profissionais. Um médico nunca deixa de ser médico, independentemente de estar ou não no seu local de trabalho e no horário da consulta. Quantas vezes não nos pedem ajuda nos espaços públicos, nos espetáculos, no nosso bairro e até nas nossas residências particulares, nas horas mais impróprias? 

A história que vou contar é exemplo disso e fala por si.

Ainda há poucas semanas, quando me dirigia para o meu gabinete no centro de saúde onde trabalho, já depois de ter completado o horário e concluído as minhas tarefas, eis que me aparece uma jovem na casa dos trinta anos, que se agarra aos meus braços e me diz: «Por favor, ajude-me. Estou com um problema terrível na minha vida e sinto-me baralhada e confusa. Penso que sei o que vou fazer, mas preciso de ouvir a sua opinião». Calculando que a minha presença era importante e a minha intervenção podia ser decisiva, não me neguei a atendê-la, voltando atrás para a poder ouvir com toda a atenção. 

Era grave o seu problema. Estava mesmo a precisar de ajuda e eu dei o meu melhor, consciente de que tinha cumprido a minha obrigação. Pedi-lhe um exame e recomendei-lhe que me procurasse de novo, logo que soubesse o resultado. Saiu do pé de mim um pouco mais calma e com algumas lágrimas nos olhos, que me fizeram crer que a conversa não tinha sido em vão.

Devo referir que considero fundamental a existência de regras nos serviços.

Ninguém mais do que eu reconhece a necessidade de se dar cumprimento às normas em vigor – e, no que diz respeito à saúde, se tal não acontecer, estabelece-se a confusão total e instala-se o ‘salve-se quem puder’, como tenho vindo repetidas vezes a chamar a atenção nestas colunas. 

Contudo, uma coisa não deve invalidar a outra. Ninguém se esqueça de que estamos a lidar com doentes, com seres humanos e não com números. Os doentes têm nome, cada caso é um caso e há muitas exceções à regra. Em minha opinião, não é aceitável recusar doentes em situação de urgência ou a exigirem uma ‘ajuda imediata’ do médico, lá porque aparecem fora do horário expresso ou por não haver capacidade de resposta. 

Tem de haver nos serviços um ‘espaço’ para estes casos de exceção, e disponibilidade do médico para os atender. É esta a sua missão e não adianta ignorá-la. 

E isso remete para a selecção dos candidatos para a entrada em Medicina, que é importante repensar. Não olhem apenas para as médias, preocupem-se em saber se há vocação ou não! Isso faz toda a diferença – e a escolha deve passar por aí.

Algum tempo depois, a jovem apareceu-me novamente, e também fora do ‘circuito normal do serviço’. 

Já com outro semblante, e com ar mais tranquilo, falou assim: «Preciso de lhe falar. É urgente. Não demoro nada». Adivinhando de que assunto se tratava, entrei com ela no gabinete. 

Sem perder mais tempo, a jovem foi clara e objetiva: «Vim aqui para lhe agradecer. Segui o seu conselho. Quando o seu colega me mostrou a ecografia, fiquei sem dúvidas. Já não estou confusa. Quero ser mãe. Obrigada por me ter ajudado. Tirou-me um peso de cima». Acompanhei-a ao elevador e voltei para o gabinete. Tranquei a porta, desliguei o telefone e fiquei em silêncio meditando calmamente na mensagem desta história. Lembrei-me, então, do que o meu pai me dizia, dos ensinamentos dos meus mestres e do que aprendi com colegas mais velhos. Onde quer que eles estejam, ao saberem desta história, dir-me-ão com certeza: «Missão cumprida!». 

Efetivamente, naquele dia, naquela hora, acredito que consegui, no verdadeiro sentido da palavra, ser médico!