Se me for solicitada (pelo Estado ou por um cliente privado) a execução de um projeto de arquitetura para um lote de terreno numa zona antiga de Lisboa, com um significativo interesse urbanístico, arquitetónico e ou cultural – que usualmente se designa como zona de Proteção ao Património Arquitetónico -, que posição devo assumir enquanto arquiteto e urbanista?
Devo limitar-me a procurar responder à intenção expressa pelo cliente, independentemente da consideração de condicionantes de diversa ordem?
Devo olhar apenas para o lote, esquecendo as áreas e construções que lhe são contíguas?
Devo desprezar ou menosprezar as condições regulamentares e legais em vigor (planos diretores municipais, entre outros)?
Devo produzir uma ‘peça arquitetónica’ com importância ao nível da fachada principal, como se a arquitetura se limitasse às fachadas?
Devo pensar apenas em demolir um edifício e substituí-lo por outro? O que importa é fazer diferente? Chamar a atenção? Procurar ganhar protagonismo?
Em projetos de arquitetura dos meus colegas Eduardo Souto Moura (para a Praça das Flores), João Luís Carrilho da Graça (para um edifício junto ao Jardim das Amoreiras) e Gonçalo Byrne (para a rua Miguel Lupi, na Lapa), justificam-se as opções por uma «fachada em ferro, vidro e alumínio» ou mesmo «apenas em betão», no sentido de encontrar «uma traça mais contemporânea»?
Pergunto-me: se as fachadas dos lotes contíguos, em cada um destes casos, fossem todas substituídas segundo este critério, como ficariam a Praça das Flores e os quarteirões junto ao jardim das Amoreiras, assim como o quarteirão na rua Miguel Lupi? Ficariam como conjuntos de edifícios com «traças mais contemporâneas»?
Por outro, não devo esquecer aqueles arquitetos que afirmam que o seu projeto não pode ser tocado, não pode sofrer alterações. Chegam a afirmar: «Na minha obra de arte de arquitetura ninguém toca!» «Tem de ser pintada de branco!» (vá-se lá saber porquê…). Até já li em entrevistas afirmações de alguns desses arquitetos, referindo : «O cliente sou eu» ou «a Câmara não me deixa fazer o que eu quero». Para eles, o cliente nada sabe e tem de se calar.
Eu também poderia atuar deste modo, mas entendo que o não devo fazer.
Como entendo que cada sítio faz o seu projeto, entendo também que os antecedentes históricos, o processo de evolução a que esteve sujeito o espaço em causa, as transformações da estrutura da propriedade no conjunto das áreas confinantes (com destaques e eventuais emparcelamentos), os modos, usos e costumes que foram caracterizando a área da cidade onde se inscreve esse lote de terreno, até pela memória histórica da vivência de gentes que permitiram encontrar um caráter espacial expresso no tempo, são da maior importância. Assim como o respeito pelas condições regulamentares aplicáveis em cada momento.
Este é o modo como o faço.
Entendo dever explicar aos leitores o meu ponto de vista quanto a intervenções em lugares sensíveis de cidades como Lisboa, apresentando exemplos do que tenho vindo a fazer.
Neste sentido, escolhi um projeto sito no Paço da Rainha, junto à Academia Militar em Lisboa, que foi executado em obra. É o que apresento, abaixo, na imagem fotográfica que fiz e que acompanha este texto. Quero destacar também a importância da participação de todos os colaboradores e especialistas que souberam entregar o seu melhor ao mesmo.
Convido o leitor a ‘olhar’ o resultado desta intervenção, em que optei por respeitar a fachada existente, recuperando-a, mantendo o papel que sempre assumiu no conjunto edificado em que se integra (o da Academia Militar), e dando a possibilidade aos proprietários de escolherem a cor que pretendiam para a sua casa, assim como de contribuírem para a organização dos espaços do interior, em função das suas necessidades.
Eles são os donos deste edifício, não sou eu. Eu sou apenas o autor do Projeto de Arquitetura. Será uma obra de arte? Não sei. Sei é que é a casa que eles queriam e na qual gostam de viver. O contributo que me deram foi imprescindível para a obtenção do resultado final.
Presumo ter contribuído para que o leitor possa ‘olhar’, procurando ‘perceber’ como é possível contribuir (ou não) para a valorização de um património cultural, ambiental e vivencial que não pertence a cada um, mas a todos.
E devo também afirmar que os primeiros responsáveis pelas ações que possam vir a ser entendidas pelas pessoas como desvalorizadoras do significado cultural da cidade de Lisboa – ações essas que resultem da execução em obra de projetos de arquitetura – serão sempre os seus autores, ou seja, os arquitetos.
E não vale a pena procurar encontrar justificações do tipo: «As pessoas que não pertencem às elites não percebem o significado da importância do que nós, arquitetos, estamos a fazer». Este tipo de entendimento, do meu ponto de vista, não passa de uma expressão de convencimento, de arrogância e de desconsideração para com ‘o outro’.
O património arquitetónico que faz parte integrante da cidade de Lisboa merece ser considerado. Deve ser respeitado. E, por maioria de razão, deve ser respeitado pelo arquiteto (seja ele de qualquer escola, corrente ou entendimento ideológico-partidário).
É de uma história, de uma memória e de uma condição cultural que se trata. Aquela que foi construída numa enorme diversidade de espaços territoriais e comunidades por todos os portugueses, ao longo de séculos.
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Optei por respeitar
a fachada existente, recuperando-a,
mantendo o papel
que sempre assumiu
no conjunto edificado em que se integra
(o da Academia Militar)