Um relatório das Nações Unidas, conhecido ontem, defende uma investigação mais aprofundada ao alegado papel do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman, no homicídio de Jamal Khashoggi, jornalista dissidente saudita que colaborava com o Washington Post. A relatora especial da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Agnes Callamard, diz ter provas conclusivas do envolvimento de Bin Salman na sua análise de 101 páginas. Khashoggi foi morto no consulado da Arábia Saudita em Istambul, no dia 2 de outubro de 2018.
“As provas apontam para que a missão de 15 pessoas para a execução do Sr. Khashoggi teria exigido significativa coordenação governamental, meios e verbas”, escreveu Callamard. “É inconcebível que uma operação com esta escala possa ser implementada sem o conhecimento do príncipe herdeiro” que, no mínimo, saberia “que algum tipo de missão com natureza criminal, direcionada contra o Sr. Khashoggi, estava a ser lançada”.
O jornalista saudita encontrava-se exilado nos Estados Unidos desde 2017. O homem de 58 anos teve uma relação próxima com a família real saudita durante muitos anos, tendo inclusive trabalhado como conselheiro do Governo. Contudo, as políticas de repressão do príncipe herdeiro levaram-no ao exílio em Washington, tornando-se um crítico proeminente do regime de Riade. Khashoggi encontrava-se em Istambul para obter documentos para o seu divórcio e visitou o consulado naquele dia com esse propósito, não acreditando que algo lhe poderia acontecer em solo turco.
A investigação teve como base escutas (com 45 minutos de áudio) dentro do consulado saudita que os serviços de informação turcos providenciaram à investigadora, o que lhe permitiu a reconstituição dos acontecimentos. De acordo com Callamard, as gravações de áudio dentro do consulado sugerem uma discussão entre os agentes e Abdah Tubaigy, um conhecido médico forense saudita, 13 minutos antes de o dissidente entrar no edifício. Callamard indica que um homem próximo de Bin Salman terá perguntado ao médico se seria possível colocar o corpo de Khashoggi – que ainda não se encontrava no consulado – dentro de “um saco”. “Não, é demasiado pesado”, respondeu o médico.
“Os pedaços serão separados. Não é problema. O corpo é pesado. Primeiro, corto no chão. Se pegarmos em sacos de plástico e cortarmos [o corpo] em pedaços, ficará terminado. Embrulhamos cada um deles”, ordenou o médico, momentos antes da entrada do jornalista.
Ainda com base nas escutas, a relatora acredita que os agentes sauditas tentaram levar Khashoggi a crer que ia ser raptado. Nas gravações, diz Callamard, ouve-se um homem dizer ao jornalista: “Vamos levar-te de volta. Existe uma ordem da Interpol”, ao que Khashoggi responde “não existe um caso contra mim”, avisando ter uma pessoa à sua espera fora do consulado – a noiva.
Entretanto, um dos homens instrui o antigo conselheiro saudita a enviar uma mensagem ao filho. “A dizer o quê?”, perguntou o jornalista: “Até já? Não posso falar em rapto”. Quando os agentes informam Khashoggi que pretendem sedá-lo, ouvem–se sons “de resistência” por parte do jornalista. Callamard refere no documento que, segundo a avaliação dos serviços de informação da Turquia e de outros países, Khashoggi poderá ter sido sedado e, de seguida, asfixiado com um saco de plástico.
O reino saudita rejeitou de início qualquer envolvimento no assassinato do antigo conselheiro. Perante várias provas avançadas pela Turquia, foi obrigado a admitir que alguns dos seus agentes estariam envolvidos no caso. Contudo, o envolvimento de Bin Salman foi sempre negado, com Riade a defender que os responsáveis pela morte de Khashoggi tinham ido além do seu mandato e seriam punidos. A posição tem tido o apoio da administração de Donald Trump, que não quer arriscar perder o aliado do Médio Oriente. “Se querem ver o preço do petróleo subir para os 150 dólares o barril, tudo o que têm de fazer é romper a nossa relação com a Arábia Saudita”, disse Trump quando confrontado com o assassinato do jornalista, em outubro do ano passado.
Callamard conclui que o dissidente “foi vítima de uma execução deliberada e premeditada, um assassinato extrajudicial do qual a Arábia Saudita é responsável”. O corpo de Khashoggi nunca foi encontrado.
A relatora especial defende ainda a suspensão do julgamento desencadeado pela justiça saudita, que está a ter lugar à porta fechada e envolve 11 suspeitos. Não vai garantir uma “responsabilização credível”, conclui o relatório.