Os martelinhos de São João continuam a animar as noites sanjoaninas, principalmente no Porto, Braga e Vila do Conde. Coexistem com o bimilenar do alho porro, sendo as as duas formas de preferidas de saudação entre os foliões. Mas a verdade é que aqueles artefactos de plástico – duplamente ruidosos, tendo ambas as extremidades de fole sonoro e apitos na ponta – têm levado a melhor sobre as plantas aromáticas, até por estas mais facilmente se desfazem depois de uma noite a atingir cabeças, enquanto os martelos resistem bem ao impacto.
A saudação de bater com os martelinhos sanjoaninos na cabeça dos foliões já dura há 55 anos em Portugal, ao mesmo tempo que a tradição de cheirar o alho porro, encostando-o ao nariz dos circunstantes, remonta a tempos imemoriais, muitos anos antes da era cristã.
Foi no Porto que, há mais de meio século, os martelos de plástico se impuseram, passando a ter até a «bênção» presidencial, quando há 30 anos o então Presidente da República, Mário Soares, passou a noite sanjoanina de alho porro na mão a levar com as ‘marteladas’ dos populares entre a Ribeira e a chamada ‘Baixa do Porto’. A folia de Mário Soares deu uma ajuda, mas já nessa altura os martelinhos estavam na moda na celebração.
Os martelinhos de São João foram criados no ano de 1963 pelo industrial Manuel António Boaventura, da Fábrica Estrela do Paraíso, em Rio Tinto, Gondomar, nos arredores da cidade do Porto. O objetivo inicial era apenas criar mais um brinquedo para adicionar à gama de que a fábrica dispunha, refere Manuel Marinho, neto do industrial e que até 2012 conseguiu aguentar a unidade fabril. «O meu avô tirou a ideia a partir de um saleiro/pimenteiro que viu numa das suas viagens ao estrangeiro, porque o conjunto de sal e de pimenta tinha o aspeto de um fole, ao qual adicionou um apito e um cabo, mas que incorporou tudo num mesmo conjunto», diz. Foi então Manuel António Boaventura o responsável pela «forma de um martelo» o que se perpetuou.
Por coincidência, nesse mesmo ano, em 1963, um grupo de estudantes universitários do Porto, dirigiu-se à fábrica com um pedido inusitado. «Abordaram o meu avô com o intuito de lhes ser oferecido para a Queima das Fitas um brinquedo que fosse ruidoso», continua. E foi então que industrial sugeriu aquilo de que de mais ruidoso tinha: os martelinhos de plástico. «Foi um sucesso, com os estudantes a darem todo o dia ‘marteladas’ uns nos outros, tendo logo os comerciantes das lojas citadinas do Porto encomendado martelinhos para as Festas de São João a realizar poucas semanas depois»
Ainda segundo Manuel Marinho, que depois da falência da fábrica do avô refez a sua vida no Brasil, «nesse ano o stock era pouco, mas no ano seguinte os martelos já foram vendidos em grande força para as festividades sanjoaninas». E, ao mesmo tempo, foram sendo oferecidos a crianças do Porto, por Manuel António Boaventura, já conhecido pela sua generosidade.
Porto impôs vontade popular Foi assim que o martelinho entrou nas Festas do São João. «Aceite incondicionalmente» pelo povo, a venda fez-se normalmente durante meia dúzia de anos, até que, um dia, «quer o vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto, quer o presidente daquela autarquia, entenderam que este brinquedo iria contra as tradições sanjoaninas, decidindo fazer uma queixa ao Governador Civil do Porto, Vasconcelos Porto, queixa esta que foi aceite». O representante do Governo notificou então Manuel António Boaventura que, no ano seguinte, se viu «proibido de vender os martelos para as Festas de São João». «E quem fosse apanhado com martelos na noite de São João seria multado em 70 escudos», salienta Manuel Marinho, evidenciando que, «nessa época, o ordenado médio era de 30 escudos».
Fazendo jus às suas matrizes liberais, de antes quebrar que torcer, «o povo do Porto não acatou esta decisão, continuou a utilizar os martelos de plástico para os seus festejos».
Entretanto, Manuel António Boaventura, «sentindo-se lesado e injustiçado nesta decisão» administrativa e unilateral do Governo Civil do Porto, teve a coragem de recorrer logo ao Tribunal, perdendo a questão na primeira instância, depois na Relação do Porto, acabando a ganhar a causa no Supremo Tribunal de Justiça, proporcionando grande alegria popular.
E a tradição continuou a enraizar-se até ao início do século XXI – mas pode dizer-se que a criação não resistiu ao seu criador. Com a morte de Manuel António Boaventura – que depois da primeira fábrica, na Rua do Paraíso, no centro da cidade do Porto, abriu novas instalações, em Rio Tinto, nos arredores do Porto – o fabrico foi decaindo. O escoamento deixou de ser aquilo que era, situação para a qual terão contribuído os preços mais baratos do fabrico massivo, por parte dos industriais chineses, que começaram a entrar no mercado português e em força, rebentando aos poucos com a produção mais artesanal dos operários da Fábrica Estrela do Paraíso e que foram resistindo até ao ano 2012.
Também para o Santo António Uma das maiores empresas distribuidoras de martelinhos sanjoaninos, se não mesmo a maior do país, bem como de outros artigos do género, é a empresa Paula Andrade, situada já em plena zona comercial da Varziela, em Vila do Conde. O gerente, Vítor Andrade, contou ao b,i. todos os anos nós vende «cerca de 50 mil martelos de várias referências».
Segundo Vítor Andrade, «vendemos principalmente para a região do Norte, mas também para o Centro e o Sul, por exemplo destinados mais ao Santo António de Lisboa». «Temos martelos que saem daqui para serem vendidos já nas lojas – os mais baratos entre um euro e meio e dois euros cada -, enquanto os mais caros podem chegar até cinco euros, havendo mais saída dos martelos mais simples, porque são os mais baratos».
Nesta época de Santos Populares, «vendem-se também outros artigos, como as fitas para se decorarem as casas, as bandeiras e os manjericos», referiu o gerente comercial, dizendo que «já os balões de fogo de ir ao ar deixaram de vender-se, porque agora são proibidos».
Chuva complica o negócio Este ano, o negócio da venda dos populares martelinhos sanjoaninos ainda está longe de ter a saída habitual, especialmente entre os vendedores ambulantes, que em uníssono, no Porto e Braga, se queixam do tempo chuvoso no Norte a impedir que os clientes andem já nas ruas tradicionais. Mas todos estão esperançados que o tempo melhore e na véspera – já amanhã – tal como no Dia de São João, consigam vender os martelos de plástico.
Em Braga, uma jovem vendedora ambulante, Matilde Anjos, que se instalou na zona central da Arcada, revela que «o negócio está muito mais parado», também «por causa da falta de dinheiro».
No Porto, o cenário é idêntico, com os vendedores a dizerem que «o negócio está fraco», atribuindo tal situação, em grande parte, «à chuva nesta altura do ano», quando ainda há poucos anos, «o clima sanjoanino era só de verão e, quando muito, só havia na noitada as orvalhadas de São João, mas nada desta chuva que dá cabo do negócio, até do material».
Ainda no Porto, os vendedores ambulantes queixam-se da dispersão das festividades, porque a zona típica das Fontainhas debruçada sobre a margem direita do Rio Douro foi, durante os últimos anos, abandonada como epicentro do São João, enquanto na zona da Boavista nunca chegou a haver o mesmo simbolismo, pelo que as pessoas se «perdem», um pouco por toda a cidade invicta. Já nas festividades bracarenses o Parque de São João da Ponte é, ainda hoje – e como sempre -, o local de eleição da passagem mais longa do ano dos Santos Populares, prolongando-se até ao cimo da Avenida da Liberdade à zona central da Arcada.
Agora, a grande esperança para os vendedores de rua, que não têm locais permanentes e dependem das condições climatéricas, é que durante este fim de semana o vizinho São Pedro ajude com o bom tempo, para que os foliões saiam à rua e comprem o martelinho, esta espécie de «salvo-conduto» com que se saúdam durante a longa noitada de São João.