Esta frase, na Rua de S. Paulo, em Lisboa, diz: «A rigor não há regra».
Muitas poderiam ser as interpretações. Afirmar que «a rigor não há regra» poderá significar que, quando aplicadas rigorosamente, as regras deixam de fazer sentido e, portanto, de existir. Também pode significar que, se analisarmos rigorosamente a realidade, não há regras, pelo que somos livres para atuar como quisermos.
A questão das regras, das normas e da liberdade individual é uma questão fundamental na sociedade e aquela em que assenta o direito, que é exatamente aquilo que regula estas duas esferas do viver humano.
A sociedade é, como diz Leonardo Polo, em última instância, a manifestação do interior aos demais, em regime de reciprocidade. É, pois, ela própria, a pluralidade de sujeitos, de pessoas, interatuando. E é na sua interação com outras pessoas, em sociedade, que o ser humano processa o seu existir ativo: a liberdade, pois, como diz Álvaro de Campos: «salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?».
Assim, tal como afirma Rafael Alvira, a sociedade não é uma opção individual, ou uma ajuda na vida, mas, antes, uma necessidade e uma obrigação, o que deve implicar o empenhamento do ser humano na preservação e desenvolvimento da sociedade em que vive. E, na preservação e no desenvolvimento de qualquer sociedade democrática implícita está a necessidade de justiça, que constitui o alicerce indispensável ao virtuoso exercício da liberdade de iniciativa e ação dos indivíduos.
O homem nasce com possibilidades infinitas. À partida poderá ser tudo aquilo que quiser, poderá fazer aquilo que entender, porque é dotado da capacidade mental e da possibilidade de adquirir os valores que lhe permitem decidir sempre da forma mais adequada. Assim, ao nascer, não deveria haver regras que determinassem aquilo que cada um irá ser. Porém, a realidade é bem diferente. Cada pessoa nasce num contexto determinado, numa família específica, num ambiente concreto. Mesmo que desejássemos que assim não fosse, o contexto em que se nasce influencia grandemente aquilo que cada um pode ser. É claro que há exceções, que há pessoas que contrariam o destino e, nascendo em condições inóspitas, acabam por ser muito bem-sucedidas.
Boris Cyrulnik, considerado o pai da «etologia humana», trabalhou com crianças profundamente perturbadas, em orfanatos na Roménia, com crianças soldados na Colômbia e com vítimas de genocídio no Ruanda, crianças rotuladas como incuráveis. As crianças institucionalizadas na Roménia não falavam, respondiam a um sorriso com uma expressão ameaçadora (porque pensavam que lhes estavam a mostrar os dentes) e mordiam as pessoas que se aproximavam. Curiosamente, os exames efetuados um ano após terem começado a viver com uma família de acolhimento com a formação psicológica adequada mostravam que os seus cérebros tinham voltado ao normal. O facto de passarem a viver num ambiente de fortes conexões emocionais permitiu-lhes recuperar. Como diz Cyrulnik nos seus estudos sobre resiliência, que é a capacidade de transformar uma situação terrível em algo útil, o afeto gera confiança, o que permite criar as condições para, quando nos acontece algo de mau, sabermos que vamos melhorar.
Não resisto a contar a história do próprio Boris Cyrulnik, por me parecer de grande relevo. Os seus pais foram mortos em Auschwitz, quando Cyrulnik tinha sete anos, e ele cresceu em França, sem irmãos nem outros parentes, sobrevivendo por se ter escondido no telhado de uma sinagoga. Trabalhou em quintas até ao final da guerra, altura em que foi institucionalizado, estudou medicina em Paris, tornou-se psicanalista e, com base na sua formação, conseguiu analisar o seu passado, numa «rage de comprendre», numa vontade intensa de compreender o seu passado, de forma saudável e positiva, o que o fez sentir mais próximo dos outros e fascinado por compreender o que significa ser humano. O seu lema é, pois: «Uma pessoa nunca deve ser reduzida ao seu trauma».
Apesar de desejarmos que não houvesse regras a limitar-nos, a verdade é que as regras fazem parte da cultura dos povos e estão interiorizadas por todos os que partilham uma mesma cultura, pelo que se impõem na vida, enquadrando-a e, simultaneamente, reduzindo e aumentando as suas possibilidades.
Assim, mesmo podendo afirmar-se que «a rigor não há regra», teremos de concluir que, na realidade, há. Até porque, muitas vezes, os nossos próprios preconceitos e as nossas suposições influenciam aquilo que pensamos e, naturalmente, a forma como agimos.