Quando a companhia de ballet Kirov chegou a Paris em 1961, no auge da Guerra Fria, o bailarino Rudolf Nureyev ficou hipnotizado. Aos 23 anos, era a sua primeira viagem para fora do Bloco Soviético e queria saborear cada momento que o Ocidente podia proporcionar. Visitou museus e galerias de arte, frequentou bares e discotecas, o que desagradou aos homens do KGB designados para o seguir para toda a parte.
«Ele estava sequioso por absorver todas as formas de arte: literatura, aprendeu a tocar piano e a ler partituras, ia ao Hermitage olhar para as pinturas e bebia tudo o que pudesse ajudá-lo a exprimir-se como dançarino», comenta Ralph Fiennes, o realizador do filme O Corvo Branco, que acaba de se estrear em Portugal.
Ao fim de cinco semanas em Paris, a companhia Kirov dirigiu-se para o aeroporto Le Bourget para apanhar um voo para Londres, onde estavam agendados novos espetáculos. Mas o KGB tinha outros planos para Nureyev: temendo uma deserção, os homens encarregados de o vigiar comunicaram-lhe que, em vez de seguir para Londres, ele ia regressar a Moscovo. No calor do momento, Nureyev decidiu pedir asilo às autoridades francesas. A decisão fez manchetes em todo o mundo.
O Corvo Branco é o terceiro filme que Ralph Fiennes dirige como realizador, sucedendo a Coriolano (inspirado na peça de Shakespeare, 2011) e a O Nosso Segredo (em que dá vida ao escritor Charles Dickens, 2013). Nascido e criado em Suffolk, Inglaterra, Fiennes tem uma longa carreira como ator, de que se destacam filmes como A Lista de Schindler, O Paciente Inglês, O Fiel Jardineiro, Harry Potter e a Ordem da Fénix ou O Grande Hotel Budapeste. Neste biopic sobre Nureyev também aparece como ator, desempenhando o papel de Alexander Pushkin, o mestre de dança que identificou o potencial do bailarino e até o convidou para viver em sua casa consigo e a sua mulher.
Como surgiu O Corvo Branco?
Havia a biografia oficial de Julie Kavanagh [Rudolf Nureyev: The Life]. Conheço a Julie há muito tempo e há cerca de vinte anos ela enviou-me os primeiros seis capítulos dessa biografia, nunca percebi bem porquê – na altura era ator, não tinha uma vontade consciente de realizar filmes, mas penso que o terá feito por saber do meu amor pela Rússia. Não sabia nada sobre ballet, não sabia nada sobre Nureyev, ela enviou-me aquilo e talvez tivesse um sexto sentido de que poderia sair dali alguma coisa. Não sei. A verdade é que me agarrou completamente. E foram apenas os seis capítulos, incluindo o capítulo sobre a deserção, que se chama ‘Exatamente Seis Passos’, que supostamente são os seis passos que ele deu em direção a um polícia para dizer: ‘Quero ficar no vosso país’. Portanto de certa forma o filme que o David [Hare, guionista] escreveu é um reflexo desses seis capítulos, que descrevem este miúdo de uma cidade de província longínqua, muito, muito pobre, pós-Segunda Guerra Mundial, e com este espírito invulgar – um miúdo que se identifica com a sua ambição de ser dançarino enfrentando a recusa do pai.
Portanto, mesmo não pensando na altura em transformá-la num filme, a história continuou consigo?
Sim, ficou vagamente como qualquer coisa sobre a qual alguém deveria fazer um filme. E depois de ter feito dois filmes com Gaby Tana, a produtora, sendo ela uma amante e tendo conhecimentos de ballet, perguntou-me: ‘Queres fazer isto?’. Com a Gaby a alimentar o meu impulso e o David a juntar-se ao grupo para escrever, arrancámos. Ter o David foi o primeiro grande passo, porque eu sabia que ele ia conseguir transmitir as complexidades políticas e a ideia daquilo a que eu chamo uma personagem ‘de alta definição’ com ângulos acentuados de arrogância, vulnerabilidade, curiosidade e paixão – tudo o que formava Nureyev. Ele era um filho da mãe mal-humorado mas tinha qualquer coisa de especial no palco que, como artista, o tornava hipnótico.
Então você não era particularmente apreciador de ballet?
Não, não foi o amor pelo ballet que me trouxe aqui. O que me tocou foi o desejo ardente deste miúdo de atingir a sua realização pessoal.
Nureyev tinha um sentido do destino?
Tinha sentido do destino e uma sede de absorver todas as formas de arte: literatura, aprendeu a tocar piano e a ler partituras, ia ao Hermitage, em S. Petersburgo, olhar para as pinturas, e bebia tudo o que pudesse ajudá-lo a exprimir-se como dançarino.
Havia pontos em comum consigo nesse aspeto? Alguém que procurava alimentar esse ímpeto criativo?
Acho que também me senti assim. Também costumava visitar galerias de arte e adoro tudo o que nos alimenta a imaginação – seja outro filme ou uma pintura, enriquece-nos, e tudo vai juntar-se ao caudal dessa coisa indefinível que estamos a tentar exprimir. Em certa medida identifico-me com ele.
Quando começou a trabalhar com o David?
Em agosto de 2014 basicamente a Gaby [Tana, a produtora] disse-me: ‘Vamos avançar, quem deve escrever o guião?’. Na altura abordei o David e em outubro, novembro tínhamos um acordo. Fomos a S. Petersburgo no final de 2014, reunimos com algumas pessoas e começámos a pesquisa inicial. Sei que o David me entregou o primeiro rascunho do guião em maio de 2015 porque tinha compromissos no teatro e identifiquei 2017 como o ano em que podíamos começar a rodagem.
De onde vem o seu amor pela Rússia?
Não sei bem dizer. Acho que os autores russos – Tolstói, Dostoievsky e Tchékov são os mais óbvios – sabem ler a humanidade. Se comparar Dostoievsky com Dickens, e são aproximadamente contemporâneos, acho que há uma escavação da loucura, das complexidades e ambiguidades do que é ser-se humano. Crime e Castigo, por exemplo, comove-me porque mostra as profundezas da depravação e o lado oculto do espectro moral. Em Tchékov há um olhar mais subtil das complicações da humanidade. Também adoro história e li muito sobre história russa do século XX. A minha irmã Martha fez uma versão em filme de Onegin e mesmo na tradução – o meu russo não é suficientemente bom para ler no original – há uma humanidade e um humor em Pushkin. Na Rússia encontrei pessoas que se tornaram minhas amigas e que mostraram uma espécie de abertura instintiva em relação à natureza humana. Não quero generalizar mas na sociedade inglesa, em qualquer nível, há uma espécie de estranho ângulo social em que nos lemos e avaliamos uns aos outros a toda a hora. É a infindável questão de classe e de como falamos e em que escola andámos. Na Rússia estava ‘virgem’ de tudo isso, era mais do género ‘quem és tu?’, ‘o que estás a dizer?’.
No filme fala russo. Quando aprendeu a língua?
O meu russo não é tão bom como parece no filme. Sei apenas um pouco de russo e esforcei-me muitíssimo. Percebo o que estou a dizer mas tive de aperfeiçoá-lo na pós-produção, e mesmo assim não sei se na Rússia vão dar conta de algum sotaque ou de uma ligeira estranheza. Trabalhei muito com um tradutor e com um sonoplasta russo por isso penso que o resultado ficou aceitável mas não tenho problemas se me quiserem dobrar para a Rússia.
Desde o início que devia pensar ‘quem é que vai representar Nureyev?’. Estava a pensar num ator que pudesse ser ensinado a dançar ou andou à procura de um dançarino que pudesse representar?
Andei às voltas com essa questão. ‘Como é que faço isto? Como é que se encontra um Nureyev?’. É o tipo de coisa impossível e estava preparado para falhar nessa busca. Acho que tinha a visão dominante de que a história era muito forte e de que o guião, como veio a acontecer, ia tornar-se cada vez melhor, por isso pensava: ‘Se eu fizer isto bem, a história e a personagem são tão fortes que, quem quer que seja o ator, é provável que funcione’. Mas claramente precisava de uma presença forte no centro. E, em termos de logística, sabia que tinha um calendário apertado, porque há muitas línguas diferentes, muitas legendas, e eu estava a puxar por um desconhecido para o papel principal, o que era muito arriscado. Mas um ator, por muito que se esforce, não treinou ballet desde criança e no momento em que levanta o braço alguém vai perceber.
Mas já houve atores que fizeram de bailarinos antes – estou a pensar no Cisne Negro…
Sim, e eu achei que a Natalie Portman foi fabulosa no Cisne Negro. Mas agora percebo a diferença. Quando vi o filme pela primeira vez não percebi, mas agora vejo. Em termos muito práticos, não havia tempo para isso. Mesmo que tivesse o melhor ator do mundo não teria o tempo de que precisávamos [para o treinar] e o nosso orçamento não teria permitido esse tipo de calendarização. Por isso fizemos uma grande prospeção através da Rússia. Houve conversas e alguma pressão para ter em conta Sergei Polunin, que está no filme e é indiscutivelmente um grande, grande dançarino. Mas eu queria um rosto que ninguém conhecesse. E quando estivemos com os quatro dançarinos selecionados, o Oleg correspondeu àquilo que eu pretendia e pareceu perceber o que é estar dentro de si próprio como um ator, portanto não está a representar, está a ouvir e a dar uma resposta vinda daqui [bate no peito]. Além disso, ele tem um rosto, com uma boca sensual e uns olhos incríveis, que por vezes tem parecenças com o de Nureyev. Falei com pessoas que conheceram Nureyev e disseram-me que ele é estranhamente parecido. A parecença física é algo que não podia ignorar, porque ele é um miúdo forte e bonito. Sei que nalguns biopics há uma grande diferença entre o ator e a figura, mas com Nureyev a aparência física era importante. E quando vi o teste de Oleg, em certos ângulos ele encontrou uma postura traquina e provocadora. É uma espécie de mistura de humor com desprezo.
Deve ter visto muitas gravações de Nureyev. O que é que isso lhe trouxe?
Vi muitas imagens de Nureyev e fica-se com a sensação de um gato a olhar para ti com desconfiança e de repente a namoriscar-te – há algo de mercurial, sensual, perigoso e de provocante e quase arrogante, a roçar o mal-educado, esse tipo de onda. E senti que o Oleg podia fazer isso com a minha orientação. Ele já era incrível e foi ficando cada vez melhor. Começou bem e amadureceu logo na primeira semana. Eu sabia que havia muitas pessoas ansiosas em relação ao facto de eu ter escolhido este ator que ninguém conhecia e a primeira cena que filmámos foi a cena da chuva à porta do Louvre em que ele mastiga um croissant e pergunta a uma mulher: ‘A que horas abre?’. Assim que a cena ficou feita, o produtor francês apareceu e disse: ‘Fantástico’. E eu também achei. Um ator, quando está a filmar, tem de ter disciplina para esperar uma hora inteira e voltar a repetir a mesma cena com uma iluminação diferente. Mas ele é um miúdo fantástico e percebeu isso. Na representação temos uma expressão que é ‘encontrar a personagem’ – e o ator e o realizador sabem quando a encontraram. No início eu era bastante explicativo, dava-lhe conselhos que não daria a um ator e exemplificava. Mas ele não me copiava – entendia e assimilava. A minha confiança nele aumentou durante as filmagens e quando o nosso editor, o Barney [Pilling], começou a trabalhar disse: ‘Ele é fantástico, e o Barney é exigente, é o tipo de pessoa que diria ‘Ralph, ele está bem, mas temos aqui alguma pedra para partir’.
Esteve sempre previsto você fazer de Pushkin?
Eu não queria aparecer de todo. Já o fiz duas vezes e estava determinado a não o repetir. Andámos à procura de investimento russo e houve interesse, mas nunca se cristalizou. Conheci uma produtora russa que me disse claramente que não apareceria investimento russo se não houvesse estrelas no filme. Sabiam que eu tinha a Chulpan Khamatova, que é uma estrela na Rússia, mas fora da Rússia o nome dela não diz muito ao mundo comercial. Até que ela me disse: ‘Ralph, porque não fazes tu o papel de Pushkin?’. Nessa altura eu estava à procura de investimento russo e queria filmar na Rússia, o que acarreta imensas complicações, e disse: ‘Ok, o dinheiro não aparece, eu faço’. E comecei a aprender russo. Foi muito duro porque nos dias em que vamos representar não conseguimos pensar em ângulos de câmara e coisas assim. Então recorremos mais ao diretor de fotografia e falamos com ele sobre enquadramentos, posições de câmara, etc. Por sorte, percebi que tinha no Mike Eley alguém em quem podia confiar. Estávamos em sintonia. Tenho um forte sentido da composição, mas aprendi a libertar-me disso e a deixar as coisas com o Mike e funcionou muito bem.
Que opinião tem sobre a deserção de Nureyev? Acha que foi uma decisão espontânea?
Sim. Acho que ele estava encantado com a vida fora da URSS. Em Paris ele saía todas as noites e há imensas histórias sobre essas cinco semanas que lá passou – como ir ver o Ben-Hur e sair a correr, dizendo: ‘É propaganda americana’, ou ir ao West Side Story, o filme, e sair a dizer: ‘Adorei!’; ir a uma livraria e não perceber que se podia comprar os livros, porque achava que era uma biblioteca; ou ainda pôr uma peruca e dizer: ‘Quero ficar parecido com a Marilyn Monroe’. A certa altura tínhamos todas estas cenas no filme, mas acabámos por usar a da discoteca e a da loja de brinquedos em que compra um comboio de brincar. É tudo verdade – ele queria uma pista de comboios e comprou-a. Makhail Baryshnikov, que também foi aluno de Pushkin, contou-me que se lembrava disso porque o fato de Nureyev foi enviado para Pushkin e pista ia metida lá dentro.
Acha que o tempo que Nureyev passou em Paris o convenceu de que queria uma vida diferente?
Acho que os KGB foram um bocadinho desastrados – os vigilantes culturais estavam tão nervosos com a possibilidade de uma deserção que acabaram por provocá-la. Acho que teria sido mais inteligente deixá-lo ir para Londres, mas naquela época havia uma espécie de paralisia pelo medo e pensaram que o levariam de volta para a URSS porque temiam que ele pudesse desertar em Londres. Li relatos de pessoas que dizem que não é muito claro se ele já estava a pensar nisso. Talvez estivesse, mas penso que não foi planeado. Acho que quando ele chegou a Le Bourget e lhe disseram ‘vamos voltar já para a Rússia’ ele ficou completamente em choque. Ele pensava que ia para Londres e tinha a ideia de que Londres era o sítio certo para se estar, mais do que Paris. Achava que Londres, com o Royal Ballet, era o melhor centro de ballet da época. Eles tinham visto o seu amor pelo Ocidente e queriam levá-lo de volta. Há relatos de tournées que eles fizeram por países do Bloco de Leste em que ele saía do autocarro e ia ver uma igreja e estava-se nas tintas para se toda a gente ficava à espera dele. Acho que estavam preocupados com o seu alto sentido de individualidade. Ele tinha desprezo pelo comportamento de grupo, ‘Vamos fazer isto todos juntos’. Não queria saber e podia ser um verdadeiro monstro. Podia ter um comportamento que consideraríamos muito egoísta e de desdém em relação àquela coisa ‘Tens de pensar nos outros, tens de pensar no grupo’.
Você encontrou-se com pessoas que conheceram Nureyev. O que é que essas pessoas acrescentaram?
Há uma cena do filme em que ele vai almoçar com os gémeos em Leninegrafo – eles aparecem na cena como o casal mais velho à mesa. Quando vemos essa cena e a rapariga diz ‘Este é o meu irmão gémeo’ e há uma imagem de duas pessoas mais velhas, essas pessoas são os gémeos reais. Deram-me muito apoio e ajuda. São pessoas maravilhosas, muito especiais. E o seu amor e lealdade para com Nureyev transparece. Diziam: ‘Ele era um menino tímido e adorava as refeições com a nossa família porque ouvia as nossas conversas, discutíamos ideias, arte e vida’. Leningrado ainda hoje se considera uma cidade de ensino e refinamento intelectual, e aquela era a versão soviética disso. Eles ainda moram no apartamento que a família tem desde o início do século XX. Para mim, eles representaram uma juventude vital que não está curvada pelo sistema opressivo. Mesmo que a história deles não continue no filme, eu adoro essa cena porque ele é claramente tocado por essa outra vida e pela vitalidade à volta da mesa e vai-se embora com a ideia de que há todas essas coisas que pode aprender e que o podem inspirar.
É o tipo de refeição em que todos gostaríamos de participar…
Sim, e eu tive disso na Rússia – a mesa da cozinha coberta de comida, vodca, e esse mesmo tipo de partilha de ideias. É uma celebração da vida e foi importante mostrar isso no filme.
E depois desta experiência tornou-se apreciador de ballet?
Aprendi a gostar de ballet e agora quero ver tudo o que puder. Acho que é brilhante. De início foi difícil e quando filmei as danças estava fora da minha zona de conforto. Por uma série de razões foi muito complicado. Acho que o Oleg não se apercebeu das vezes que tivemos de repetir. Eu pensava que sabia filmar aquilo e aproximava-me muito do corpo do dançarino, mas curiosamente isso não mostra a dança e percebi que o que gostamos de ver é a forma do conjunto de todo o corpo em voo e os dançarinos assumem mesmo essa forma para os espectadores. Se nos pusermos atrás deles, não é tão bonito nem tão interessante. Quando veem imagens deles próprios, comentam ‘o meu pé não está no sítio certo’ – o que escolhem mostrar é algo de uma precisão inacreditável.