Primeiro lembrei-me do macaco. Das imagens do macaco, quero dizer. Era um babuíno e são feios os babuínos com aquele rabo em carne viva, o bicho dava pinchos mas estava preso com uma corda a um ferro espetado no chão e o Agostinho ria-se para as câmaras, lá em Torres Vedras, onde construíra uma casa depois de ter vindo do Ultramar, de Moçambique, perdido como tantos outros naquela guerra estúpida de matar turras e ficar-se à espera que uma mina rebentasse na picada, levando as pernas de um, deixando outro cortado a meio, meio homem, meio nada. Em África jogara futebol, levava jeito, mas tinha um compadre num lugar com o nome de Casalinhos da Alfaiata: era o Roque, ciclista do Sporting, que um dia ao vê-lo montado no selim, com aquele arfar próprio do Tino, acima e abaixo nos pedais como alcatruzes de nora, lhe tirou a bola da cabeça e o levou a Alvalade que até tinha pista de ciclista e tudo. Uma vez vi lá o Agostinho, pelos finais dos anos 70, já depois de umas cinco Voltas a França, acenando para a multidão em pé, aplausos estralejavam, foi antes de um jogo qualquer, foi em 1978 ou 1979, tinha acabado em terceiro no Tour, era o maior das bicicletas cá da malta que muito ia trabalhar de bicicleta nesse tempo que não volta mais.
Nunca ninguém escreveu Agostinho tão bem como Carlos Miranda. Contou a sua vida, página a página, em formato broadsheet, naquele estilo inconfundível de quem tinha sempre um sorriso a bailar nas entrelinhas. Se Roque foi uma espécie de padrinho em Torres Vedras, Jean Gribaldy foi seu padrinho em França, com a ajuda de Manuel Barbosa, que ficaria, mais tarde, conhecido como empresário de futebol, e não tardou a querê-lo no Tour, em 1969, Tinô, chamava-lhe, não se rogou, foi-se à primeira etapa, dia 28 de Junho, com tal gana que, sem ninguém dar por ela, já estava em fuga, 71 quilómetros exatos em fuga isolada, até que veio de lá o Eddy Merckx pôr termo àquilo, podia lá ser, afinal era um novato e, sobre o novato, o mestre Jacques Goddet escreveu no L‘Équipe: «Não aprendeu nada e sabe tudo!».
Elogio a sério de jornalista superlativo. Joaquim Agostinho agradeceu-o logo na etapa cinco, entre Nacncy e Molhouse, uma descida alucinante a mais de 90 quilómetros à hora, três ciclistas a par, Grosskost, Agostinho e Merckx que era camisola amarela e abranda, não a quer em risco, surge Ocaña na perseguição, tudo num ritmo de loucos, mas Joaquim não olha para trás, só cerra os dentes até cortar a meta com 18 segundos de avanço sobre os que vinham na sua cola, primeiro português a vencer uma etapa da Volta a França, tem o boné ao contrário bem enterrado na cabeça, e fala com uma tranquilidade assustadora para quem acabara de receberr os seus galões de herói: «Olhe, foi como se tivesse ganho uma etapa da Volta a Portugal. Nem mais, nem menos. Sinto-me apenas menos tímido, vocês sabem lá como são as coisas no meio do pelotão, com aquelas feras todas, mas já me conhecem, sabem que gosto de ajudar. E dedido esta vitória à minha loirinha de Torres Vedras». Assim mesmo, loirinha e não lourinha, que o Tino era orgulhosamente saloio e não ia em fugas ao seu sotaque torrejano, mesmo que alguém tenha decidido que a vizinha Lourinhã não se chamasse Loirinhã, vá lá saber-se porquê.
As feras…
Merckx, Poulidor, o seu eterno segundo, Gimondi, Pingeon, Vianelli, Ocaña, Zoetemelk, Vam Impe, Thevenet… As feras. Um circo de feras que rondavam Agostinho, o simples Joaquim de Torres que chegara a Roubaix à boleia de Manuel Barbosa, e fora instalado num albergue de Tourcoing, em cima da estação dos caminhos de ferro, toda a noite a ouvir passar comboios, enquanto o belga ferrava o sono no melhor hotel do centro da cidade.
Não foram apenas as feras a rosnar-lhe aos tornozelos. O azar também ladrou: em Duvonne-les-Bains teve uma queda bruta, o alcatrão rasgou-lhe a pele e a carne, levou a bicicleta às costas até à meta, cortando-a a pé, coxo. Mas nada ultrapassava a sua resistência física, os seus limites psicológios, a sua capacidade de sofrimento trazida desse oeste português onde se ouvem, ao longe, o rugir das ondas atlânticas. Ganhou nova etapa, ia, aqui e ali, desviando os holofotes que teimavam em encandear o belga Merckx, era, como não sê-lo?, o comandante da classificação do Prémio da Combatividade (que Merckx também lhe tirou à beira do final). 60 quilómetros em fuga na direcção de Revel, partindo de La Grande Motte, dia 12 de Julho. Braços no ar de mais uma vitória para a loirinha de Torres Vedras.
Agostinho pedalava como se fosse em fúria. Arrancava numa mistura de sentimentos e pressentimentos e de coisas que só a sua alma enorme conseguiria exprimir. Agostinho pedalava e Carlos Miranda escrevia e ficaram para todo o sempre como a maior dupla do ciclismo em Portugal. Continuo a ler o Miranda, ele que fez o favor de me ensinar, ainda agora, 50 anos passados sobre a primeira aventura do Tino no Tour, décimo classificado na lista final, com Merckx em primeiro, inevitavelmente primeiro. Leio o Miranda e vejo Agostinho subindo os Pirenéus, camisola Frimatic, de Gribaldy, de Thonon-les-Bains a Chamonix, de Chamonix a Briançon, de Briançon a Digne, de Digne a Aubagne.
Na véspera de chegar a Paris, à consagração de Eddy, que à quinta etapa vestiu a amarela para não mais a tirar nas dezassete que se seguiram, Agostinho era o oitavo da geral. Foi nono no contra-relógio final, entre Creteil e Paris, teve gente a gritar pelo seu nome ao longo dos Campos Elísios, os emigrantes nunca o deixaram sozinho, «Jaquim! Jaquim! Jaquim!», e ele sempre com aquela cara de quem pede desculpa por dar nas vistas, de quem pede desculpa por ser grande, de quem pede desculpa por ter uma daquelas vontades infinitas, tão portuguesas de, um dia, gritar ao mostrengo imundo e grosso: aqui sou mais do eu que, sou um povo que quer o mar que é teu! E o Tino teve o seu mar…