‘Vinicius cantou as mulheres da forma mais delicada e linda possível’

Para Mart’nália, não há fronteiras entre o samba, a Bossa Nova ou a música popular brasileira. «Sou misturada mesmo», diz-nos de passagem por Lisboa

Nasceu há 53 anos e teve como berço uma roda de samba, numa casa cheia de artistas onde o silêncio era um agouro. Mart’nália, filha de Martinho da Vila e de Anália Mendonça, bem pode dizer que nunca procurou uma carreira na música, mas os seus pares reconhecem-na como uma das mais sonoras e completas artistas do meio, com o dom, herdado e conquistado, de representar o passado, o presente e o futuro do samba. Para Mart’nália, não há fronteiras entre o samba, a Bossa Nova ou a música popular brasileira. «Sou misturada mesmo», diz-nos de passagem por Lisboa, onde vai fechar, no próximo dia 7 de julho, no Estúdio Time Out, a tournée do seu mais recente trabalho: Mart’nália Canta Vinicius de Moraes. Entretanto já esteve noutros lugares, como o Funchal, a Fuseta, o Porto, Dublin, Londres, Zurique ou Paris, para apresentar o disco em que, do seu jeito, presta tributo ao «poetinha amado, o branco mais preto do Brasil», e no qual gravou uma tema com uma parceira improvável: Carla Bruni. O sorriso aberto, que, admite, quase nunca a larga («Como brasileira e com herança africana, brinco com as nossas desgraças. Sorrir das desgraças acaba me movimentando para o ponto positivo»), atravessou também a conversa que passou pela sua Vila Isabel, pelo que é ser carioca, pelo pezinho que deu na representação e pela naturalidade como que sempre (não) falou da sua orientação sexual. Até porque, diz, nunca teve nenhum armário de onde sair.

Quando a procuramos na internet aparece o seu nome e por baixo uma lista que diz assim: é atriz, cantora, compositora, percussionista e instrumentista. Diria que esta ordem de importância está correta?

Nunca (risos).

Então como se vê?

Só uma artista brasileira, digamos assim. Não sou uma atriz, porque eu sou da música, essa parte de atriz foi um presente do Miguel Falabella e uma brincadeira boa que foi o Pé na Cova (uma série de comédia emitida entre 2013 e 2016). Acho que me vejo assim como uma artista carioca, brasileira, mais do que uma cantora, uma compositora.

Julgo que foi o Caetano Veloso que disse sobre si que não há um instrumento que a Mart’nália não toque. Isto é verdade?

Não, eu não sei tocar violino, por exemplo (risos).

Mas na percussão?

Na percussão tenho uma certa intimidade, porque na verdade comecei como percussionista e vocalista, até por causa da escola de samba da Vila Isabel. Saio na bateria. Com a percussão tenho mais intimidade, tem sempre um negociozinho para bater, um balde. Realmente na percussão eu posso tocar numa boa, e se me ensinarem um pouquinho então! Mas só olhando já dá para eu ir caminhando, entendeu? Acho que a cuíca [semelhante a um tambor] é o instrumento mais difícil.

Nasceu basicamente numa roda de samba…

Posso dizer que sim, foi o meu berço.

Lembra-se da primeira vez que tocou?

Não lembro mesmo. Não fui criada para ser música, para ser uma artista. Costumo falar – e é verdade – que foi o que sobrou. Depois fui indo, fui indo. Não me lembro do primeiro instrumento que toquei, mas acho que o instrumento que mais gosto de tocar é o tamborim. 

Mas tendo em conta o ambiente em que cresceu, em miúda nunca pensou em ser artista?

Não pensava, até chegar à beira de fazer a faculdade. Pensava ir para Comunicação, até porque não tinha assim faculdade de música, estava começando, e não havia tanto essa opção. 

Isso tudo no Rio?

Sempre. Sou carioca, nascida em Vila Isabel (risos).

Como foi crescer numa casa com tanta gente e com tanta música?

Muito bom, a gente fica mais aconchegado, sempre havia um carinho ou um abraço. Estava sempre rodeada de sorrisos, em família. E depois a maioria dos meus irmãos tocam também.

São quantos?

Somos oito, de várias mulheres. [cantarola] ‘Já tive Mulheres’.. (risos). Nem sei pensar como seria se fosse filha única, porque cresci com bastantes pessoas em volta, não só os pais e os irmãos, mas todos os parentes, muitos primos. Agora com o tempo as pessoas vão-se indo. Então é sempre bom. Acho que só consigo viver assim, com muita gente em volta.

O silêncio para si é uma coisa…

Chata (risos).

O que lhe ia perguntar é se nunca sentiu que precisava de estar sossegada.

Não, não tenho esse lado. Sinto até falta do barulho, quando há silêncio me dá até um pouco de nervoso.

Estar nesta sala sem qualquer barulho fá-la ficar nervosa. 

Não, mas ainda me estou me acostumando até com o som dos lugares, dos países, gosto de entender o som dos países e lugares onde vou.

Os sons são diferentes de país para país?

Sim, e até os silêncios são diferentes, mesmo nas noites. Sou uma pessoa muito da noite, por causa dos bares, onde vou desde cedo. Então o meu fuso já é ruim. Geralmente durmo na hora em que as pessoas estão correndo para o trabalho. Essa coisa do som da noite, do som da cidade, do comportamento das pessoas, me invade. É difícil para mim viver sem som.

Quando o seu pai a começou a chamar para os concertos, pensou nisso como um trabalho?

Não pensei muito num trabalho, na verdade. Quando tinha 16 anos, comecei a tocar com os meus irmãos mais velhos, Analimar e o Martinho Antônio. Então o meu pai fez um disco que se chamava Terreiro, Sala e Salão. E aí, como diz o nome, terreiro eram músicos de terreiro, a sala de sala e o salão eram músicas de Carnaval. A certa altura do disco, já tinham feito os vocais e precisavam de fazer a festa do salão, uma coisa mais real, com marchinhas de Carnaval. Os vocalistas profissionais já tinham ido, e o meu pai disse: ‘Vamos chamar o pessoal para fazer um barulho aqui junto com os vocalistas’. E a gente foi fazer. O meu pai sempre cantou com as irmãs dele, e para ele fazia sentido assim, para dar mais real ao vocal. E comecei assim. A certa altura ele falou: ‘Vocês tem que terminar a escola, mas porque não pegam e tiram uma carteira da ordem dos músicos para poderem ir de vez em quando atuar comigo?’. Ele queria que todos terminassem os estudos, tivessem o canudo de papel, e a gente foi assim para a música mas sempre estudando. E quando encaixava ele nos botava nos concertos.

Era uma coisa informal.

Exatamente. Andávamos assim, mas tinha que ter a carteira de músico, para não ter problemas.

Como funciona essa carteira? 

No Brasil teve sempre, agora já está até um pouco mudado. Nesses anos nunca tinha a carteira profissional de músico, era sempre, como se diz..

Estagiária?

Isso! Todos os anos renovava, até há pouco tempo era estagiária (risos). Porque não tinha isso [a profissionalização] na cabeça. Então na época em que fiz o vestibular resolvi ir para Comunicação porque não tinha nada em vista…

E gostava de falar, de comunicar?

Não, também não gosto de falar (risos). Prefiro me livrar das palavras. Mas não passei no vestibular, óbvio, não estava preparada. Na verdade, se eu tivesse pensado e fosse mesmo do estudo, talvez tivesse escolhido veterinária, pediatra, uma coisa assim. Mas também quando vejo sangue desmaio, portanto não ia dar certo (risos). Mas quando não passei em comunicação, fiquei meio triste.

Tinha quantos anos, 18?

Por aí. A minha irmã passou, o meu irmão estava terminando os estudos da Faculdade. Quando contei ao meu pai que não tinha passado, ele responde: ‘Po, filha, não fica triste não’. Aquela coisa de pai, e ele sempre foi um cara legal. ‘Faz o seguinte: vem comigo para Nova Iorque que eu vou ter um show lá e você esquece um pouco isso’. Já tinha tudo certo para ir, o passaporte, a carteira. Quando estava já indo a minha irmã me diz: ‘Mart’nália, teve uma repescagem [o equivalente a uma segunda fase] e o teu nome está lá’. E eu: ‘Por amor de Deus, cala essa boca, não fala isso com o pai, porque está tudo certo para eu ir e ele vai querer que eu fique (risos)’. Então fui fazer o show, depois outro show no Rio. E a partir daí fui indo, fui indo, até aqui.

Quantos anos trabalhou dessa forma com o seu pai até se lançar a solo? É que entretanto já gravou onze discos.

Pois, depois comecei a ser vocalista dele só nos LP’s. Até que na década de 80 houve o Festival dos Festivais, muito grande, que lançou muita gente legal. Pediram para o meu pai escrever uma música e ele e o Zé Katimba escreveram Recriando a Criação. Ele não queria defender a música porque achava que ficava feio, sendo o Martinho da Vila, então pediu: ‘Vocês vão lá e cantam para mim, quebram o meu galho’. Isto tudo para o festival ter um samba, porque havia poucos sambas na época. Era a Leila, talvez o Emílio e a gente – o grupo que o meu formou e que se chamava Trinca Própria. Própria porque era dele mesmo (risos). Defendemos a música muito bem no Gigantinho, em palco. Não ganhámos mas fomos um pouco injustiçados o que foi ótimo, porque como meu pai dizia: ‘Em festival só ganha quem ganha ou quem é injustiçado’. Todo o mundo sabia que na época era mesmo assim, não se queriam tantos sambas, então acabaram cortando a gente. Mas foi lindo, eu nem queria muito cantar, mas continuei. Isto foi em 1985 e continuei cantando até agora.

O rótulo de ser filha do Martinho da Vila e da Anália beneficiou-a ou prejudicou-a na sua carreira?

Bom, a partir do momento em que me trouxe aqui acho que foi mais positivo do que negativo. Acredito que todos os ‘filhos de’ demoram um pouco a se soltar, até pela cobrança. Um filho de médico que já herda o nome e o jaleco do pai há sempre aquela dúvida de será que ele é um bom médico. E isto pode ser em qualquer coisa, pode ser de um lixeiro, de toda a gente que tem de herança a profissão de dentro de casa. Eu herdei também o carinho que as pessoas têm pelo meu pai, que afinal de contas é um cara muito legal e bem considerado. Por isso sempre foi mais bom do que ruim – sem ser aquela fase de quando a gente é adolescente, que a gente não quer nada.

O talento também se herda, mas também é inato e a Mart’nália é considerada uma das pessoas completas do mundo do samba. Sente esse reconhecimento?

Já venho cantando e tocando com muitas pessoas. Acho que tenho bom ouvido, mas sempre me considerei mais música do que cantora. Aceito com carinho, sei lá, é como se diz: ‘Não mereço mas agradeço’ (risos). 

Há pouco disse que nos anos 80 o samba não estava assim tão na moda. Sente que hoje está mais do que nessa altura?

Acho que foi um caminho natural que não tinha outra forma de ser. O samba hoje está em alta, tanto no Brasil como em todos lugares do mundo. Sempre foi a nossa maior representação, a bossa-nova também, mas a bossa-nova para mim é samba. Tem toda aquela particularidade das harmonias, das influências, e na década de 80 quando começaram os sambas e os pagodes eu vim na contramão, gravava uma coisa mais lenta, mais careta (risos). Talvez por causa das minhas influências. Eu não entendia quando em pequena falavam ‘Não deixem o samba morrer’, ou ‘O samba agoniza mas não morre’. 

Cresceu a ouvir esses slogans?

Sim, e só depois de um tempo entendi a necessidade e vi que tinha uma separação na música brasileira. Música popular brasileira (MPB) e samba para cá, sertanejo, rock, tropicalismo. Antigamente a gente não se misturava muito, talvez o tropicalismo se tenha misturado mais. Meu pai também se misturou bastante, graças a Deus. Acho que foi um caminho natural, de reconhecimento, porque a partir do momento em que a gente [dos diversos estilos] se reconhece tudo fica mais fácil. O tambor e o coro sempre estiveram presentes nas músicas, até nas orquestras, nos nossos folclores, então acabamos nos encontrando. O Brasil é muito grande e tem essa diversidade musical.

Acha que hoje há mais fusão entre os estilos?

Muito mais, todo o mundo canta o samba.

E a sua praia continua a ser aquele samba tradicional?

Acho que é mais um samba misturado.

Hoje vemos um fenómeno de músicas, por exemplo, cantadas em espanhol, a chegarem a públicos que só falam inglês e que, mesmo não percebendo a língua, as procuram. Isso pode acontecer com o samba ou acha que este não é um tipo de música talhado para essas multidões?

Estou aqui para isso (risos). Pode me usar à vontade.

Mas pela proximidade, Portugal é um público fácil. Falava de públicos não falantes da língua.

Portugal não é tão fácil assim. É gostoso, porque tem a emoção da nossa História, mas é um público muito diferente do brasileiro. Em Portugal o público é mais atento, quando as pessoas vão, vão mesmo para escutar. A gente até estranha, pensado se estão gostando. No Brasil é mais… [levanta os braços e faz a festa]. A não ser quando estamos num concerto num teatro. Aqui não precisamos estar num teatro para as pessoas estarem com atenção, sendo samba ou que for. É diferente, é uma forma de a gente também aprender a ouvir. O silêncio também é música. 

Está cá a apresentar o seu Mart’nália Canta Vinicius de Moraes. Há quanto tempo queria gravar Vinicius?

Já venho cantando Vinicius de Moraes há bastante tempo, desde o Pé do meu Samba (2002) que foi o meu disco produzido pelo Caetano. No princípio era um disco de samba de canções, mas, como sou misturada, acabou virando outra coisa. Cantando com o Caetano, ouvi duas músicas, que eram O Tempo Feliz e o Mulata do Sapateado. O samba canção sempre foi uma música permeada com bolero, e nessa altura gravei essas duas músicas. Tinha lembranças dele lá em casa com o meu pai, mas era bem pequena, nem sabia o que era poesia.

O Vinicius era visita de casa?

Era, ele o meu pai eram camaradas, digamos assim. Um tempo depois, já cantando essas músicas por causa do disco, já grande e já conhecendo e amando as poesias, fiz um show de homenagem ao samba no Back to Black, um festival de artes negras, onde fiz só os afro sambas do Vinicius de Moraes. O festival teve a direção do Arthur Maia, grande amigo. Aí fiquei mais próxima ainda. Depois de um tempo, me chamaram para fazer um programa no Canal Bis e eu escolhi quatro compositores. Escolhi Chico Buarque, meu próprio pai, o Noel Rosa e o Vinicius de Morais. Puxei as músicas mais do afro samba, das lentas só cantei o Por Onde anda Você. Depois no + Misturado, um disco que fiz também e acabei ganhando um Grammy, pus também o Vinicius. E teve uma novela [Babilônia] em que cantei o tema de abertura [Pra que Chorar], e quando a gente faz novelas fica mais próximo, invade a casa das pessoas. Antes disso teve o documentário do Vinicius de Moraes, dirigido pelo Miguel Farias, várias pessoas cantaram e me chamaram para cantar o Sei Lá A Vida Tem Sempre Razão. E aí fiquei mais próxima da família, conheci melhor as filhas. Entretanto fui gravando outros discos.

Mas ficou sempre com esta ideia no fundo da cabeça.

Sempre gostei do Vinicius. E aí quando gravei o disco Mart’nália em Samba, a gente botou essa música. Até que, há dois anos, abriu o Blue Note no Rio – está abrindo em alguns lugares, antes havia só em Nova Iorque. E aí fiz uns quatro shows só com Vinicius e Noel Rosa. Foi muito legal e pensei: vou fazer um disco de Vinicius e Noel Rosa. Kati [de Almeida Braga], minha patroa do Biscoito Fino [editora musical], que adora também Vinicius, que achou tão bonito esse show, também disse para gravar o disco com Vinicius e Noel. E eu topei, até porque agora não queria gravar nenhum disco autoral. Foi quase uma preguiça (risos).

Uma preguiça boa?

Uma preguiça maravilhosa! Decidi cantar o amor, cantar poesias, até porque estamos precisando lá no Brasil e quanto mais a gente cantar o amor melhor. Entretanto a minha amiga Teresa Cristina estava com um trabalho sobre o Noel Rosa – que para mim talvez fosse um lugar mais comum por causa da Vila Isabel – e aí deixei de parte e fiquei só com Vinicius.

Cantar o amor então é, pegando no que estava a dizer, uma decisão política?

É. Cantar as mulheres, com essas coisas todas que estão acontecendo… Infelizmente, não está bom não.

O seu disco começa com o Samba da Bênção, onde presta tributo ao ‘poetinha amado, o branco mais preto do Brasil’. 

Na verdade, são palavras dele. Achei que podia falar isso, apesar de que hoje em dia não se pode falar nada, está chato para caramba essa coisa do politicamente correto. E essa possibilidade que o Vinicius nos deu, com a licença poética que ele tinha para entrar na religião africana, esse passe livre, isso é uma representatividade de que as pessoas às vezes têm uma certa cautela. Mas ele está ali, vivo, e quis mostrar ele assim como ele foi e como ele é.

Diz então que Vinicius é uma fusão do preto e do branco, sem tabu. Acha que em vez de caminharmos para a frente há mais tabu?

No Brasil eu sinto esse tabu em muitos lugares. E acho que a gente precisa se misturar e ele foi o cara que mais se misturou. A poesia dele é doída, mas não é tão doída. Tem uma alegria, uma boemia…

A malandragem.

Isso, aquela malandragem pura e linda que o carioca tem e que está faltando. A mim não falta (risos). Mas alguns têm que se lembrar desse tipo de carioquice.

Essa malandragem pura é de nascimento ou conquista-se?

Nasce, ou temos ou não temos, mas depois a gente vai trocando. Vai trocando abraços, vai trocando carinho, vai trocando poesia e músicas. 

O Vinicius canta que para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, mas a Mart’nália é conhecida pela sua energia feliz e pela sua luz. Não tem nenhuma dessa tristeza?

Mas ele também diz que é melhor ser alegre que ser triste (risos). A verdade é que não sei ser diferente. A tristeza não me fica muito, só se falarmos em termos de doença e de morte. Como brasileira e com herança africana, brinco com as nossas desgraças. Sorrir das desgraças acaba me movimentando para o ponto positivo. E acho que o Vinicius também tem uma coisa dessas, mesmo na poesia mais melancólica, da perda do amor, tem essa brejeirice. 

Isso vem tanto das letras como da forma de cantar?

Vem, acho que vem dos dois lados. E no meu caso acho que é herança do meu pai. Ou então tenho muito dente na boca (risos).

E como é que a Carla Bruni vem parar aqui a este disco? Que fusão é esta?

Doido, né? Bom, Vinicius cantou as mulheres da forma mais delicada e mais linda possível. Desse mundo da Bossa Nova gostava muito da Nara Leão, e fazendo o CD queria uma voz que lembrasse mais esses tempos. Até esbarrei em convidar a Bebel Gilberto, mas achei que ficasse talvez muito óbvio, porque ela é cria da Bossa Nova. Pesquisando Vinicius e ficando mais próxima da família, fiquei pensando na trajetória dele e na proximidade a França. Aí minha produtora me sugeriu Carla Bruni. Ela me disse que ela estava voltando à música, fizemos o convite e ela aceitou. Pensei: ‘Maneiro!’ Ela me deve ter dado uma ‘googlada’, eu dei uma ‘googlada’ nela. Tem uma voz linda que acho dá para fazer uma coisa que tem mais a ver com o Vinicius de Moraes mesmo do que comigo, na verdade. Mostra mais o ambiente dele do que o meu.

É um tributo?

Exatamente, do meu jeito, mas é. É um tributo ‘mart’naliado’. Escolhemos a música Insensatez para eu cantar com a Carla Bruni, e o Celso Fonseca, que fez metade dos arranjos ao lado do Arthur Maia, foi até Paris para tirar o tom. Depois batemos na tradução da poesia, que é uma coisa muito delicada, não pode mexer Mas como graças a Deus estávamos todos em família, e a família do Vinicius também ajudou, e a própria Carla Bruni também ajudou a escolher. E depois o Mário Lúcio conseguiu fazer uma tradução sem alterar a mensagem da poesia e o ritmo, que teve também em conta como os franceses vão receber esta música. Ela cantou lindamente e foi mais um presente no universo do Vinicius de Moraes.

A história do seu nome é curiosa. Pode contar?

Mart’nália com apóstrofe! Leva mesmo apóstrofe na certidão de nascimento, hoje já não se usa muito mas antigamente usava-se a união de nomes. O meu irmão mais velho é Martinho Antônio, também um tributo católico – o meu pai quase foi padre – e depois veio a Analimar. A minha mãe, que também era cantora, se chamava Anália. Nos nomes desses meus dois irmãos os meus pais juntaram os seus nomes, depois quando cheguei eu costumo dizer que nao passa de uma preguiça, porque eles só trocaram a ordem e botaram apóstrofe (risos). 

Pensava que era o seu nome artístico!

Muita gente acha! Mas nasci assim. Está na certidão, nasci dia 7 de setembro no dia da independência do Brasil, meu pai estava marchando e minha mãe diz que me tirou antes da homenagem a ele. É muito amor mesmo.

E pensa voltar à representação ou quer continuar a trilhar este caminho da música?

Só se for com o Miguel Falabella. Já tive alguns convitezinhos mas não é realmente o meu setor. Só fiz com o Miguel porque ele é um louco maravilhoso e também foi uma coisa feita para mim, não tive que mudar muito para fazer. Não sou uma pessoa que tenha muita memória, não falo muito bem, a minha dicção é péssima.

A personagem que fez em Pé na Cova era Tamanco, um transexual.

Sim, era dono de uma mecânica e era casado com uma louraça, a Luma Costa, que na época vendia o corpo na internet. Tínhamos a Marília Pera no show, que nos deixou também, e o Miguel fazia de meu sogro. Eles tinham uma funerária e não nos podiam expulsar de casa, depois adotámos a criança. Acho que a série ajudou muito a abrir cabeças, com a linguagem do Miguel Falabella e dos outros diretores.

Acha que este show (terminado em 2016) seria regravado nos dias de hoje no Brasil?

Não sei, mas acho que íamos ser muito censurados. Além da história a gente falava de várias atrocidades maravilhosas do dia a dia, corriqueiras, mas claro que a gente entende que se há crianças a assistir talvez seja melhor não – tanto é que a série passava mais tarde. Agora no Brasil está a repetir no canal Viva. Brincávamos com tudo, sempre muito pé no chão: o gordo era o gordo, o preto era o preto, o careca era careca, o aleijado era o aleijado, mas com uma leveza de família. Uma família sinistra e maluca (risos). Não sei se hoje seríamos bem vistos.

E não seriam bem vistos por causa da tal ditadura do politicamente correto ou pela orientação atual do Governo do Brasil?

Os dois. É uma erva daninha que se vai botando nas pessoas, em vez de a gente se estar abrindo culturalmente e para a aceitação geral.

É homossexual e tanto a Mart’nália como a sua família sempre o comunicaram com naturalidade, como sendo um não assunto.

Fui bem criada. Foi sempre uma coisa que é o que é, de deixar a pessoa ser como é. 

Tem 53 anos. A sociedade em que cresceu era mais aberta do que esta que encontra? Também cresceu numa família com uma bolha diferente…

Nós nem pensávamos nisso. E também acredito nisso, que essa coisa da música, de estar mais perto das artes, pode ter contado. Isto apesar de a minha família também ser muito tradicional. Costumávamos dizer que a minha avó fazia mais rezas do que o Papa. Às vezes, à sexta-feira estava saindo, querendo ir para o baile, e a minha avó dizia: ‘Mart’nália volta aqui, você vai ficar comigo rezando’. E eu ficava, e não era uma coisa de sacrifício. O sacrifício durava dois segundos, era uma coisa de respeito e de ter que ser e pronto. E era também um carinho, de ser escolhida para ficar com a minha avó.

Sendo tão religiosa ela sempre aceitou bem a sua orientação?

Todo o mundo. Sempre falaram: ‘É uma moleca, deixa ser como ele é. Ela não gosta disso, não vai forçar a pessoa a ser o que ela não é’. Acho que a minha família sempre foi assim. E depois à volta ninguém falava disso, essas coisas agora é que estão sendo faladas. Falar disso para mim… estou até tendo que aprender, porque eu não sei falar e às vezes me chamam. Meu movimento é a música, a alegria e vou passando assim. Não fui criada a pensar que era uma coisa importante, agora é que as coisas se estão permitindo e está todo o mundo saindo do armário. Eu nunca tive armário (risos).

Está a dizer que a chamam para ser ativista e responde que o seu ativismo é a música?

Sim, é o movimento negro que está no meu corpo, dentro da minha voz. Até peço desculpas a muita gente porque não tenho muita paciência, e sei que o momento é esse, de a gente falar. Mas eu não gosto de falar nada – só estou falando porque você está perguntando. Há gente que fala melhor do que eu, tem mais engajamento político e de vivência, de dor. Nunca senti essa dor, mas sei que ela existe e ‘tamo aí’. Se precisar, aí vou atuando.