Jãozinho da Patu. Era assim que lhe chamavam em Juazeiro, cidade onde começa a história de João Gilberto, ali nascido a 10 de junho de 1931. Apesar de ser tido como o mais inteligente dos sete irmãos, lixou-se desde cedo na escola. Encontrou a sua razão aos 14 anos, quando um «um padrinho boémio» lhe deu um violão. Gravitou em torno do instrumento desde esse dia, naquela cidadezinha da Baía, quase toda feita de pó, com poucas árvores – as que havia adornavam o largo da igreja matriz, a zona mais rica, onde os seus pais moravam.
Havia uma árvore que subia acima de todas as (poucas) outras: era um tamarineiro que se tornou numa espécie de ponto de encontro da vida de todos os dias da cidade, e onde os miúdos se reuniam para tocar no violão as canções que ouviam no altifalante ‘dominado’ por uma personagem da terra, seu Emicicles. Foi ali naquela sombra que João Gilberto, com um pequeno grupo, começou também a dedilhar o seu futuro.
A história é narrada com mestria por Ruy Castro no livro Chega de Saudade (ed. Tinta da China), que conta «a história e as histórias da Bossa Nova» e traça os caminhos confluentes de personagens como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Nara Leão, Maysa, Ronaldo Bôscoli, Jonhy Alf ou Sylvinha Telles. A história de João Gilberto, morto há uma semana aos 88 anos, é, contudo, uma espécie de fio condutor da narrativa. Afinal, se no Rio havia um grupo de jovens sedentos do «moderno», foi a revolução da forma de tocar do baiano que os uniu.
João Gilberto Prado Pereira de Oliveira era filho de seu Juveniano Oliveira, um self made man, e de dona Patu, mais coquette, vinda de famílias influentes.
Os pais não gostavam da queda de Joãozinho para a música e, às tantas, começam a cortar-lhe as vazas – eram os amigos que juntavam entre si os trocos da mesada para que pudesse comprar as cordas para o violão.
João Gilberto era uma criança meio tímida, mas muito popular entre os amigos. E foi um menino meio «avoado» – uma vez, foi jogar à bola e a mãe implorou-lhe que não perdesse os sapatos. Descalçou-se para jogar «no pelado» e enterrou-os na areia: nunca mais os encontrou.
Aos 18, decide sair de Juazeiro para perseguir uma carreira na música. Primeiro morou em Salvador, até que chega ao Rio de Janeiro «em busca de champanhe, mulheres e músicas». Estávamos em 1950, e a chegada do juveníssimo João, fã de Orlando Silva e de Lucio Alves, que imitava a cantar, faz-se pela mão da banda Garotos da Lua. Convidaram-no para substituir o antigo crooner, o vocalista Jonas Silva. Mas os seus sucessivos atrasos – tinha um relógio interno que funcionava num fuso só dele – levaram ao despedimento. Gravou jingles, atuou em espetáculos, fez-se paisagem das boates da zona sul, mas não conseguia impor-se até porque, como se verá adiante, ainda não tinha, nessa altura, descoberto a batida, a sua batida, a tal que viria a revolucionar a unir uma criação chamada Bossa Nova.
A sua primeira estada no Rio desaguou, portanto, na poça seca da desilusão. Não conseguiu singrar e foi ficando, de favor, na casa deste e daquele. Dizem que chegou a passar fome – Ruy Castro não conseguiu confirmar tal desfortuna. Talvez fumasse mais maconha do que devia, mas cedeu a outro ópio muito pior: a melancolia.
Preocupado com o estado de angústia, Luiz Telles leva-o para Porto Alegre. Fez lá os 24 anos, e começa a perceber que, sem método de trabalho, nunca conseguirá por cá fora o que o corroía. Não se sentia ainda pronto para voltar ao Rio, e é então acolhido pela irmã mais velha, Dadainha, em Diamantina (Minas Gerais).
Ficou em casa da irmã até maio de 1956, período durante o qual «ninguém jamais chegou a vê-lo na rua (…). Mas a cidade não ficou alheia à sua presença», escreve Ruy Castro. Diziam que Dadainha tinha dado guarida a um estranho irmão que passava os dias inteiros de pijama, fechado no quarto com o seu violão, de onde só saía para ir à casa de banho, onde também permanecia largas horas. E o violão ia com ele. Estava obcecado, era capaz de passar horas aperfeiçoando um acorde, e, quando sentia que atingia uma perfeição que só existia para ele, tinha explosões de alegria.
Preocupada, Dadainha manda-o de volta a Juazeiro, ao cuidado dos pais – uma «humilhação» – e todos temem que sofra de uma doença mental.
Chegou a estar durante uma semana sob observação num sanatório em Salvador, mas recebeu ordem de soltura (só muitos anos mais tarde lhe será diagnosticado um transtorno obsessivo compulsivo).
É durante este período de exílio fora do Rio que compõe Bim Bom e Hô-bá-lá-lá. Mais tarde, numa das raras entrevistas que concedeu, explicou como, com o rigor do perfeccionismo a fazer-lhe de timoneiro, tinha cruzado o cabo da loucura. «Quando eu canto, penso num espaço claro e aberto onde vou colocar meus sons. É como se eu estivesse escrevendo num pedaço de papel em branco: se existem outros sons à minha volta, essas vibrações interferem e prejudicam o desenho limpo da música».
A segunda vida
Voltou à cidade maravilhosa em 1957, e nos primeiros tempos tratou de trilhar um regresso feito pelo «caminho das cinzas».
E se ainda aí caiu em algumas esparrelas do passado, havia algo diferente em João Gilberto.
Admirador incontido de Carlos Drummond de Andrade (chegou a pedir-lhe uma vez um autógrafo na rua, que o poeta, encavacado, assinou a tinta turquesa) falava de poesias para pôr nas canções numa altura em que os músicos talvez ainda não percebessem o valor das palavras. Dominava a voz, que preferia sussurrada, e tinha até noções de respirações de yoga, das suas paragens – tudo isto acompanhado da nova forma de tocar violão. Começa a usar o Plaza para ousar com as suas músicas e torna-se numa espécie de «celebridade da zona sul».
Já conhecia Vinicius, e vai ao encontro do poeta e letrista, que lhe dá uma música escrita quase por «capricho» há meia dúzia de anos, tirada do cimo da pilha. «Nada indicava que Chega de Saudade tivesse um grande futuro – ou qualquer futuro», continua o autor. A letra, com música de Tom Jobim, implicava uma estrutura melódica específica, que se veio a revelar perfeita para o novo mundo aberto pelo violão de João Gilberto.
O tema de 1:59 minutos foi pela primeira vez gravado no LP de Elizeth Cardoso, Canção do Amor Demais, em abril de 1958. Só depois João Gilberto consegue gravar na editoria Odeon, por si só, o seu «histórico» 78, Chega de Saudade. O sucesso não foi imediato. João Gilberto causava «estranheza» e, no início, quase ninguém o estava a ouvir nas rádios.
No livro que biografa o movimento, conta-se um episódio curioso e que sintetiza esses primeiros tempos. Álvaro Ramos, gerente de vendas das Lojas Assumpção – à data, uma importante rede de lojas no Brasil –, e que era tido como um markeeter capaz de cheirar o ouro se o produto fosse bom, achou que estavam a gozar com ele quando ouviu a música pela primeira vez, perguntando por que gravaram com um «cantor resfriado».
Dessa vez, o faro de Ramos falhou com estrondo. O disco invadiu as rádios e a batida de João Gilberto tornou-se numa obsessão para aquela geração de músicos, que viriam a tornar-se nos porta bandeiras da Bossa Nova.
Do mundo ao escudo do seu mundo
A história, a partir daí, é mais conhecida. A Bossa Nova vai subindo de mansinho de tom no Brasil, até que explode dentro e além fronteiras.
João Gilberto parte em digressão mundial com o novo ritmo feito brisa e vai morar para Nova Iorque. Em 1964, recebeu o seu primeiro Grammy pelo disco Getz/Gilberto (que conta com o saxofonista norte-americano Stan Getz e Tom Jobim) e que ainda é, até hoje, o álbum de jazz mais vendido da história – «o que é surpreendente, por ser, na verdade, um disco de bossa nova e cantado em português!» –, lembrava Ruy Castro na crónica que publicou na Folha de S. Paulo a propósito da morte do génio.
Voltou definitivamente ao Brasil em 1979, 18 anos depois de ter saído do país. Fechou-se no seu apartamento, com a reclusão que lhe vinha crescendo lá dentro a escudá-lo do mundo, e começa a ser acusado de uma excentricidade que lhe era amplamente reconhecido na esfera privada, menos na pública.
Reclamava com o público, abandonava os concertos (como aconteceu há 30 anos no Coliseu de Lisboa, episódio que recordamos nas páginas seguintes), falhava compromissos. Perdeu amigos, dinheiro e, até, reputação. Quando fez 80 anos, anunciou uma digressão que não chegou a acontecer e a penúria em que vinha vivendo nos últimos anos adensou-se: morava agora num apartamento emprestado, na Gávea. Os problemas vinham bem de trás: em março, o Tribunal do Rio de Janeiro deu-lhe razão no longo processo que o opunha desde os anos 80 à entretanto reabsorvida Odeon, a editora dos seus primeiros álbuns – Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) – e a quem exigia o pagamento de direitos de autor que rondam os 39,2 milhões de euros. Caetano Veloso foi um dos que lutou a seu lado no processo, afirmando por diversas vezes que João Gilberto sofreu «incalculáveis prejuízos».
João Gilberto casou três vezes. A primeira com Astrud Gilberto (em 1959) – no ano seguinte nasceria o filho do casal, João Marcelo –, a segunda com Miúcha, em 1965 – Bebel Gilberto nasceria em 1966. Em 2004, teve a sua terceira e última filha, da união com Cláudia Faissol. Era atualmente casado com Maria do Céu Harris, que esta semana, durante o velório no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, deixou um pedido: «Quero que o Brasil faça silêncio para ouvir João Gilberto».
O último capítulo da sua vida teve a sombra feia de um desentendimento familiar entre os filhos explorado até à exaustão nos jornais e no amplificador das redes sociais. Bebel Gilberto, conseguiu a sua interdição judicial em 2017, numa altura em que os problemas financeiros lhe entravam por baixo da nesga da porta que teimava em não abrir. O filho, João Marcelo, não lhe perdoou.
O funeral realizou-se nesta segunda-feira e os herdeiros continuam de costas voltadas. Ao longe, o que não são pormenores nas relações pessoais tornam-se em notas de rodapé garatujadas e que o tempo tornará em pó. São apenas gotinhas que não maculam o mar do legado de João e o seu violão a quem um mundo que se levantou para o aplaudir lhe acena, grato e enternecido.