Na estrada de Alcácer para a Comporta, essa reta ladeada de pinheiros e areia, três corvos debicam o cadáver de um gato certamente atropelado. O embate fez-lhe explodir a barriga, as entranhas espalham-se pelo chão, o sangue ainda mancha o alcatrão que ferve dos 28 graus que dizem estar à sombra como na canção de Albertini e Barbelivien. «C’est fou, c’est trop». Não para mim, sempre saudoso do calor indiano de Colva a derreter os corpos e a diluir o pensamento numa pasta tranquila na qual não há espaço para nenhuma dor fora do mar.
Daqui a um bocado, quando tomar o caminho de volta, o gato morto não será mais do que um bloco seco repetidamente passado a ferro por pneus. O destino dos mortos é um destino sem exemplo. Uns parece que vivem para sempre; outro fundem-se na superfície dos caminhos. «On est tout seuls au monde/Tout est bleu, tout est beau./Tu fermes un peu les yeux, le soleil est si haut».
Não faço ideia se estás sozinha no mundo. Eu, se não estou, queria estar. Apenas na companhia do mar e do céu, tão, tão profundamente azuis como os olhos da minha tia Mena, minha tia pequenina, que se fundiu no azul infinito de todos nós, todos nós azuis, azuis-Olival, azuis-avó-Manelas, como a minha filha Francisca que me foi esbulhada por capricho social de uma mãe agarrada às convenções que a mandaram arranjar um marido adulterino, pai falso, pai fantoche, pilhando uma menina-azul aos irmãos, aos avós, aos tios, aos primos, por vergonha, por cobardia, por canalhice velhaca, por necessidade de continuar a estar num lugar de privilégio que não merece, que é triste, triste, tão triste como uma mulher perdida no vazio do seu próprio orgulho bacoco, mazombo, orgulho daquilo que não é, mentira sem limites num tacanho universo que a atura, que a suporta, que a segura no plinto abandonado de uma estátua de gesso grotesco e viciado.
Não sei viver a vida sem azul. Deito-me na areia e há azul em meu redor. Fixo o céu com os olhos semicerrados e o azul entra por mim, ocupa todos os recantos de que sou feito, e só quero ser azul, simplesmente azul, como os olhos da minha tia Mena, carregados de um tom impossível de exprimir, como os olhos da minha filha Francisca que repetem os nossos olhos, geração atrás de geração, menina tão perfeita afogada em mentiras, em falsidades, em incongruências, filha de um pai que não é pai, neta de avós que não são avós, mero joguete nas mãos de gentalha sem princípios e simplesmente canalha até ao mais sujo fundo dos seus próprios complexos.
Quando, na batalha de Aubers Ridges, na I Grande Guerra, o capitão dos Royals Marines, Anthony Wilding, foi atingido com uma bala no meio do olhos e ficou estatelado nos campos de Neuve Chapelle, de braços estendidos, alvo, louro exangue, fitando os céus perdidos, como o Menino de Sua Mãe de Fernando Pessoa, ninguém pareceu muito preocupado em perceber o que fitava para sempre a clareza das suas iris baças. Um azul-impossível entrou dentro de Wilding, aquele que vencera Wimbledon por quatro vezes, e nascera em Christchurch, Nova Zelândia, destinado a ser o rapaz feliz de uma família feliz.
A família é uma fraude, digo eu que conheço tudo sobre a cor azul. Sou azul por dentro e por fora. Olhos e pensamento; alma, lucidez; e todos, todos, mas todos os sentidos. Wilding era azul e morreu azul num campo de flores vermelhas como papoilas. Dêem-me um pouco de azul todos os dias para eu sentir que a vida vale a pena, que a vida vale absolutamente a pena, e quando perguntarem à inocência de uma criança roubada de onde vem o azul dos seus olhos, ela que fique sem resposta mas com a decisão íntima de que um dia, um dia qualquer, vão ter de lhe explicar a verdade das cores e a translação e rotação de mundos que nunca se cruzam a preto e branco.
No plaino abandonado/Que a morna brisa aquece/De balas trespassado/- duas de lado aa lado -/Jaz morto e arrefece». Que passa pelo olhar de um morto, por mais azul que ele seja? Que passa pelo olhar azul de um vencido, por mais traído que ele seja?
Que passou pelo olhar quase transparente de Wilding quando, de repente, uma bala lhe perfurou a cabeça e o deixou fitando, com olhar langue e cego, os céus perdidos? Até onde se arrasta o limite de perder um céu? O azul transparente da minha tia Mena que, um dia, me surgiu no buraco onde eu vivia, mergulhado num azul-tristeza, para simplesmente não me dizer nada que eu não pudesse perceber no azul-utópico da sua expressão tão profundamente carinhosa que me senti, guiado pela sua mão, transportado até ao topo da montanha mais íngreme da ternura. Eu, que tenho uma filha azul, sei a verdade dos poemas: «Que voltes cedo e bem…». O meu abraço ficará escancarado para sempre à tua espera porque te amo para além da tua própria consciência.
afonso.melo@newsplex.pt