Imagine o seguinte cenário: à entrada da discoteca ou restaurante da moda o porteiro informa que, para passar, deve deixar as chaves de sua casa e respetiva morada. O porteiro compromete-se prontamente a respeitar a sua privacidade e integridade dos seus bens, informa que não pretende mexer em nada, apenas vai fazer umas fotografias, tirar umas notas para recolher informação, para que o estabelecimento em causa o possa servir melhor. Concordava?
A primeira resposta imediata é óbvia, um rotundo não. A segunda também e sob a forma de indignação, verbalizada num porquê ou para quê? Mas a partir daqui os caminhos não são assim tão óbvios e, trocando a analogia pelo caso real, há muita gente que opta por entrar no Facebook, só em Portugal são cerca de 5 milhões de contas.
Não acredito que a maioria das pessoas tenha conhecimento de todos os direitos que cede à plataforma, neste caso o Facebook, sobre os seus dados pessoais e todo o conteúdo que produz. Custa muito ler todas as frases dos contratos, interpretá-las e decidir em conformidade. Além de que na net a regra é muito aqui e agora, e quando criamos uma conta no Facebook o mais provável é estarmos a pensar no post que vamos fazer ou nas pessoas que vamos passar a seguir. Certamente temos outro tipo de utilizadores, que procuram conhecer as regras, interpretar os seus limites e utilizam a plataforma com plena consciência do que estão a fazer. Mas não representam uma maioria, ou a questão da privacidade dos dados já teria evoluído para outros termos e, certamente, o Facebook não teria o número de utilizadores que tem.
Mas para que querem as empresas os nossos dados? E porque valem tanto dinheiro? Há várias perspetivas. Há um benefício, pelo menos teórico, de uma melhor experiência de utilização da plataforma e, no limite, da internet no seu todo. Ou seja, conhecendo e perfilando as pessoas, uma plataforma como o Facebook pode entregar uma experiência mais personalizada, com opções de conteúdos e contactos que partilhem os meus interesses ou que evidenciem outros pontos comuns. Nesta argumentação, o Facebook é o lado bom da internet, que filtra o que tem interesse do que não tem de acordo com o nosso padrão de comportamento. O que não tem relação connosco não aparece. O grande negócio é a publicidade, quanto mais direcionada melhor possibilidade tem de ser eficaz – resultar numa venda – e o valor do contacto que inicia este processo é necessariamente mais elevado. Todo o processo pode acontecer, pelo menos em teoria, mantendo toda a informação dentro do ecossistema do Facebook, sem intervenção de terceiros. Esta é uma das visões mais românticas para este fenómeno.
Outra perspetiva, complementar à anterior, é que os dados dos utilizadores são processados e vendidos a terceiros, nalguns casos com intenções muito questionáveis. Para muitos o episódio Cambridge Analytica não está nem esquecido nem ultrapassado, terá sido apenas o início de uma maior consciência da ameaça, apesar de à data não se verificarem movimentos muito significativos de quebra de negócios ou de número de utilizadores. Os dados do Facebook valem muito dinheiro, permitem conhecer as relações pessoais de cada um, por onde andam, em que horários, o que mais veem e o que não consomem de todo. Serão muitos poucos os anunciantes que não querem ter acesso a esta informação – o que não quer dizer que a comprem a qualquer custo – e poucas plataformas saberão tanto como o Facebook sobre os seus utilizadores. Acredito que nos próximos tempos, anos, a discussão e implementação de medidas como o Regulamento Geral de Proteção de Dados não só vai continuar, como se aproximará cada vez mais do quotidiano das pessoas, numa maior proteção da informação sobre tudo o que fazemos, sobretudo do que não temos consciência.
O consumidor apesar de desinformado, o que no limite é uma opção de cada um, tem alguma consciência do valor dos seus dados e é por isso que não se importa de os ceder. Ou seja, se a recompensa compensar, ceder dados não é um problema. Entendo que este seja um bom princípio, desde que garantidas algumas condições e igualdade, nomeadamente conhecimento dos fins a que se destinam os dados e uma consciência do seu valor real. O desconhecimento destas condições faz com que atribuamos um valor inferior aos dados do que eles realmente têm, e que estejamos disponíveis para os ceder a troco do privilégio de pertencermos a uma rede social. E assim podemos mostrar a todos os conhecidos (não vamos chamar amigos às centenas de pessoas a que estamos ligados no Facebook, mas isso é tema para outro texto) o resultado da operação bikini. Os dados pessoais valem muito mais do que isto.
Esta semana Steve Wozniak, um dos fundadores da Apple, aconselhou todas as pessoas a saírem do Facebook e de todas as redes sociais, exceto se o benefício que daí retiram compensar um risco elevado. Woz terá ido mais longe e deixou no ar a possibilidade, já muitas vezes falada, das plataformas ouvirem conversas ou medirem batimentos cardíacos, através dos smartphones. Quero acreditar que num certo exagero destas declarações, que existe um nível de proteção razoável, seguramente que isto (ainda) não acontece. Mas o Zuckerberg tem um papel a tapar a câmara do computador. Onde há fumo…
*Responsável Planeamento Estratégico do Grupo Havas Media