O diretor do hospital psiquiátrico acabara de tomar posse e fazia questão de avaliar todos os doentes, para cotejar o que constava na ficha clínica com o resultado da sua própria observação.
Tudo na perfeição, até àquele doente cujas respostas contradiziam flagrantemente o historial clínico, não sendo percetíveis sintomas de distúrbio mental justificativos de internamento: discurso coerente, raciocínio articulado, memória viva, reações normais aos estímulos exteriores…
Enfim, um caso tão estranho, que levou o médico a perguntar-lhe: «Diga-me uma coisa, senhor Osvaldo, por que razão está aqui?», ao que o doente respondeu: «Por causa da democracia, senhor doutor!». «Por causa da democracia? Explique-me lá isso», quis esclarecer o médico, já a admitir que a ficha poderia, afinal, estar certa.
Foi assim, doutor…Como já lhe disse, eu sou de A-dos-Gatos, uma vilória perdida lá na charneca. Um dia, vi chegar as máquinas para fazerem rotundas à volta da vila e perguntei: ‘Para quê rotundas, se não há cruzamentos?’
E a vila, em coro: ‘És parvo ou quê? Não vês que é uma benfeitoria? Já reparaste na beleza das esculturas que lá puseram? São do sobrinho do presidente da Câmara! Parece que o rapaz é artista…’.
E eu: ‘Esculturas? Mas não vêem que aquilo são calhaus?’.
E a vila em coro: ‘Calhaus? Na campanha eleitoral, o presidente até disse que a vila estava a precisar de Arte e Cultura, para quebrar um atraso secular. Um atraso secular! Sabes o que isso é?’.
Tempos mais tarde, chegou a Parque Escolar. Destruiu a escola antiga, terraplanou e começou a levantar uma nova, com seis salas de aula, sala de professores, refeitório, biblioteca, campo de jogos, ar condicionado…
Não me contive: ‘Então, agora que já quase não há alunos é que estão a fazer uma escola? E com estes luxos todos?’.
E o coro: ‘És mesmo burro! E onde vão as crianças aprender a ler?’.
E eu: ‘Crianças? No meu tempo sim, éramos quase cem… Mas, agora, a escola velha não chegava para os dois cachopos que lá andam? E daqui a três anos… já nem haverá miúdos para irem à escola’.
Pouco tempo depois, começou outra grande construção: um pavilhão polidesportivo.
‘Só podem estar equivocados!’ – disse eu. ‘Para quê um pavilhão desportivo, se cá na terra só há velhos?’. ‘Não interessa’, responderam em coro. ‘Se as outras terras têm, por que não há de a nossa ter também? O presidente da Câmara até explicou que é um investimento, e que dá trabalho ao pessoal. Para mais, o pavilhão até vai levar o nome dele’. E eu: ‘Mas só estão estrangeiros a trabalhar nas obras…’ E o coro: ‘E o que é que isso tem a ver? Cala-te, mas é…’.
Mais um ano e foi o fim. Começou a construção da piscina!
‘Quem é que vai lá nadar?’, perguntei eu, na minha inocência. ‘Está tudo maluco, ou quê?’
E aí, a vila inteira virou-se contra mim: ‘Maluco estás tu!’.
Olhe, senhor doutor, foi assim: eu dizia que estava tudo doido, o povo dizia que eu é que estava doido. Ganhou a maioria!».