João Morais não gostava de telemóveis. De tempos a tempos ligava-lhe para casa, ou para o fixo, como se diz agora, e ficávamos um bocado à conversa. Certa vez fiz-lhe uma partida, mas ele não levou a mal. Fui, de Lisboa, com o meu bom amigo e camarada do France Football, Erik Bielderman, para uma entrevista grande, de estadão. Um número especial chamado: «Eu marquei Pelé!» Com todos aqueles que, nos Campeonatos do Mundo, se viram frente a frente com aquele que será sempre, para mim, o melhor jogador de todos os tempos. Ora, toda a gente sabe que o Morais e o Pelé tiveram aquela disputa de 1966, há que dizer que o Morais, que nisto de dar e levar era bem mais de dar do que de levar, acertou em cheio no joelho do crioulo, não por uma, mas por duas vezes, de enfiada, e deixou-o a pão e laranjas para o resto do encontro. O João defendia-se: «Ele já estava lesionado. Não fui eu. Aliás, tanto estava lesionado que nem jogou contra a Hungria para o pouparem para o jogo contra nós. Eu fui duro. Mas ele também tirou partido do episódio. A seguir a isso ameaçou-me, disse que me partia uma perna, e eu moita, calado. O Coluna, que não podia com o Pelé é que lhe ia dizendo: ‘Tem cuidado. O Morais tem maus fígados. Jogou boxe. Olha que é menino para te deixar KO!’ Tudo brincadeira, claro, mas fiquei com essa fama chata». Sim, é verdade, ficou. O bom do João e nós, à conversa, à beira Ave. Só que também já era o Morais do canto. Ou do Cantinho do Morais. Primeiro cantado por Margarida Alexandre e, depois, pela inevitável Maria José Valério: «A terra estremeceu/E verde se tornou/O sonho aconteceu/Um golo só bastou/Um golo do Morais/Que não esquece mais/Vivò Sporting!/Gritou a multidão em ovação/Que teve a raça pra ganhar a grande taça/pois então/Onze leões com um querer de um só leão/Com mil razões para vencer do coração/Vivò Sporting!/Que até contra o azar lutou com fé/E à portuguesa pôs na luta mais grandeza/Mais ralé/Assim falou de Portugal às multidões/Assim ganhou essa final de campeões/Quando o jogo acabou/Na hora que Deus quis/Todo o País chorou/Orgulhoso e feliz…»
E o Morais, quase ofendido: «Era o que faltava ficar mais conhecido pelo que aconteceu com o Pelé do que por causa do golo que deu a Taça das Taças ao Sporting. E mais te digo: aquilo não foi por acaso. Já tínhamos repetido o movimento várias vezes, nos treinos. Olhei para o banco, o treinador fez-me sinal que sim, com a cabeça, beijei a bola e chutei-a para golo. E foi!».
Ora, no banco, o treinador era arquiteto.
Treinador e arquiteto ou arquiteto e treinador, como vos aprouver, talvez mais o segundo do que o primeiro.
Anselmo Fernández, assim mesmo, com z, era de família espanhola mas nasceu em Lisboa no dia 21 de Agosto de 1918. Tentou ser jogador, no Sporting, era o Sporting que lhe enchia a alma, mas fraco de apêndice, riscaram-no da lista de candidatos. Fez uma perninha no râguebi, mas era como saltar de cavalo para burro. E como de burro nada tinha, estudou e fez-se arquiteto. Dos bons.
Anselmo tem esta particularidade que faz dele, sem rebuço, um nome irrepetível na história do Sporting: além de ter sido o treinador que venceu a única taça europeia da vida do futebol do clube foi dele a caneta que, sobre um estirador, desenhou o antigo Estádio de Alvalade. Augusto Sá da Costa, seu colega e amigo, deu uma ajuda. O meu fraterno Bernardo Trindade, alfarrabista desde que nasceu, pela mão do pai, arrebatou recentemente às cavernas da humidade, da degradação e do olvido, os planos originais do velhinho José Alvalade, inaugurado em 1956 e, mais tarde, substituído por este que, desculpem lá, opinião pessoalíssima, deixa tanto, mas tanto, a dever em magnificência ao anterior, e eu até sou do tempo do peão.
Esse tal Anselmo…
Tal como as cerejas, que se puxam de um saco e vêm presas umas às outras, a vida de jornalista é constituída por ligações como esta que vão, mais tarde, desaguar, ou não, em artigos. A dar à taramela, após um jantar agradável, o Bernardo diz-me para ir até ao seu tugúrio, na Rua do Alecrim, para espreitar os originais de Anselmo Fernandes. Para quem gosta de futebol e da sua história, são fascinantes, e há aí, nestas páginas, um e outro a ilustrar o que escrevo. Fui tantas, tantas e tantas vezes ao Estádio José de Alvalade que é fácil perceber, nos traços corretos e medidos da sua planificação, os lugares por onde passei. Quando fiquei a saber que a obra ia ser posta em leilão na internet e já tinha uma boa resenha de interessados, fiz-lhe um gesto de alerta – coisa assim só poderia ir parar às mãos de sportinguista sério, dos antigos, daqueles do «Alto lá que eu sou leão!», como diria o António Silva n’O Leão da Estrela, e leão, leão é o Francisco Febrero, da vetusta raça dos leões de Alcântara. Enfim, lá se entenderam ou entenderão, que daí para diante fui atrás apenas do tal Anselmo, Fernández de apelido, fruto de espanhóis de Zamora, que acabaria por morrer em Madrid em Janeiro de 2000 por entre um desinteresse daqueles de fazer borborigmos no estômago e comichões no sangue. Enfim, de ingratidão é Portugal um país rico. Se a exportasse como quem exporta rolhas ou garrafas de azeite, estaríamos no topo da economia universal. Anselmo Fernandez morreu dorido, magoado e nunca o escondeu: «As luzes e a glória perturbaram-me. Por isso de que vale ficar magoado se 99% dos sportinguistas não façam ideia de que o treinador que venceu a Taça dos Vencedores de Taças era apenas um arquiteto de profissão que, apesar de filho de Espanha, nasceu em Portugal e teve no Sporting a sua grande paixão?» Responda quem souber e quem quiser…
No tempo deste desabafo, já no seu leito derradeiro, era treinador da CUF. Gostava de conduzir depressa, ao arrepio dos devidos cuidados. Na Ponte Sobre o Tejo teve um acidente aparatoso. Exigiu uma trepanação. O cérebro não é um orgão disposto à exposição dos elementos. Condenou-o à morte pelo descuido. Os erros pagam-se, geralmente, demasiado caro. Esse foi irreversível. Nunca, ao longo da sua vida, pediu um tostão do Sporting: «Não poderia aceitar. Era contra os meus príncipios, contra a minha forma de estar no futebol. A minha profissão era outra: a da arquitetura. Trabalhar para o Sporting seria sempre um prazer que se pagava a si próprio. Deixei-me arrebatar por uns meses, depois da vitória na Taça das Taças e rapidamente me arrependi. Foi a única vez que tive ordenado em Alvalade».
Uma vida a verde e branco
Anselmo Fernández foi convidado para orientar o futebol do Sporting na época de 1962. Orientar, digo eu, porque treinador havia e tinha currículo: José Sezabo. O problema era que Sezabo estava a perder o apoio dos adeptos e Fernández foi, de certa forma, servir-lhe de respaldo. E bem. O Sporting retomou o caminho das vitórias, Sezabo voltou a sorrir, Anselmo adquiriu uma aura de homem ao qual os triunfos não viravam costas. Além disso não tinha nada a perder e dizia o que lhe passava pela alma, lhe subia pelos pulmões e lhe saía pela boca em sopro tranquilo de homem tranquilo. Tomou posições duras, impôs castigos a jogadores abandalhados, foi ganhando um poder até então imprevisível. No final da época, nas costas da dupla Sezabo/Juca foi campeão. Ah! Mas ninguém tinha dúvidas sobre a sua importância no crescimento do edifício leonino. Não era arquiteto só de papel passado, timbrado e carimbado com selo branco: era arquiteto de vida, de perceber onde e como encaixar peças que, à primeira vista, não batiam certo. A direção do Sporting, atenta, convidou-o para um almoço pomposo, colocou-lhe à frente, antes de chegar a sobremesa, um contrato atraente e Anselmo, tão Anselmo que era, disse não: «Meus caros, eu sou arquiteto, não sou treinador de futebol. Não vamos confundir as matérias». O café azedou um pouco.
Foi à sua vida arquitetural.
Teve parcerias marcantes. Com os melhores dos melhores. António Pardal Monteiro, por exemplo. A seu lado avançou para uma obra não apenas monumental mas absolutamente marcante: a Cidade Universitária de Lisboa. Faculdade de Letras, Faculdade de Direito e o nobilíssimo edifício da Reitoria.
Com outro Pardal Monteiro, o Porfírio, atirou-se à concepção do Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade; com Jorge Ferreira Chaves e Goulart Medeiros inventou o Hotel Florida. Isto é, dificilmente podemos flanar por Lisboa sem deparar com algum traço desse zamorano que tinha por nome completo Anselmo Fernández Rodríguez. Hoje, quantos o recordam? Mesmo no seu clube o coração para o qual não apenas inventou um estádio, ao tempo moderno e vistoso como poucos, mas também uma taça cujo recorte devia agradar de sobremaneira ao seu gosto inovador.
Depois da dura derrota do Sporting em Old Trafford, frente ao Manchester United, por 1-4, Manuel Nazareth, vice-presidente, resolveu despachar o treinador brasileiro Gentil Cardoso. Anselmo sentou-se no banco, em Alvalade, na noite mágica dos 5-0. Ficou. Não era treinador a sério. Era só como se fosse. No final da época voltaram à história do contrato. Para que fosse, a partir, treinador a sério mesmo: «Ofereceram-me 15 contos por mês, valor que, naquela altura, era baixo para um treinador, sobretudo depois da vitória na Taça das Taças. Aceitei. Só recebi um mês, porque, já na época seguinte, depois de ganharmos 4-0 ao Bordéus, demiti-me. Antes do jogo, o vice-presidente Pereira da Silva decidiu enviar aos emigrantes em França uma carta de captação de simpatias com as assinaturas de 11 jogadores. Leu a carta, ao almoço, embevecido, perguntou-me a opinião, disse-lhe que a ideia era gira, mas que achava que, por enquanto, ainda era eu o treinador, não percebendo, por isso, porque estavam lá aqueles 11 nomes e não outros. Ganhámos e…
em Lisboa, demiti-me. Nunca mais voltei ao Sporting!»
Já se cumpriram dezanove anos sobre a morte de Anselmo Fernández. O velho Estádio José de Alvalade, que encimava o Campo Grande no caminho para o Lumiar, não existe mais. Mas, como dizia Iva Delgado, a memória, essa, nunca prescreve.