Na vida de todos há situações que nos marcam para sempre e casos que vamos continuamente recordando, pois saem da rotina normal do dia-a-dia.
De um modo geral, é curioso constatar que, apesar de nos marcarem muito, esses casos passam muitas vezes despercebidos e pouco se fala neles. E isto porque na sociedade há muito ruído à nossa volta, que nos desvia a atenção daquilo que é essencial.
Quase sem nos darmos conta, somos levados pela corrente à procura de mais e de melhor, num mundo que ‘vai girando ao sabor da fantasia’. Citando Antoine de Saint-Exupéry: «O essencial é invisível aos olhos. Só se pode ver com o coração».
O caso que hoje apresento é uma das louváveis exceções à regra. Mostra precisamente os valores defendidos por um pobre homem, pobre aos olhos dos homens mas rico no seu íntimo, que visitei em sua casa ainda há pouco tempo.
O dito senhor, através de outra pessoa, perguntou-me se o podia observar no domicílio, visto já não poder deslocar-se ao centro de saúde. Importa esclarecer que as visitas domiciliárias feitas pelos médicos de família estão previstas na carreira, nos casos em que há uma impossibilidade comprovada da deslocação dos utentes às respetivas unidades. Nenhum clínico pode recusar-se a cumprir essa ‘valência’.
A visita terá de ser agendada e combinada entre médico e utente, nunca sendo possível em situações de urgência. Antigamente, ainda no tempo dos antigos Serviços Médico-Sociais, havia o chamado ‘médico dos domicílios’, que se ocupava exclusivamente dessa tarefa. Esta figura desapareceu quando foi criada a carreira de Medicina Familiar – e hoje em dia cabe aos médicos de família dar-lhe resposta.
Ao tomar conhecimento do pedido, tratei de agendar a visita. Sempre que é possível, procuro ir a pé, como foi o caso, pois para além de ser fundamental à saúde (como recomendo aos doentes) é uma forma de conhecer melhor o bairro e os seus habitantes.
Parti em direção à Igreja da Memória (monumento nacional onde repousam os restos mortais do Marquês de Pombal) e entrei finalmente na Calçada do Galvão, de onde guardo tão boas recordações. Olhando para a janela de uma das casas, onde já não vive ninguém, lembrei-me daquele casal de idosos que me esperavam à porta, sorridentes, sempre que os ia visitar. Que saudades!
Quando cheguei ao destino, o sr. Carlos – que atendi tanta vez no meu gabinete e que agora já não pode sair de casa devido a problemas de locomoção – recebeu-me de lágrimas nos olhos. E, em dada altura, disse-me isto: «Senhor doutor, sou um pobre, como vê, mas sou dono da maior riqueza que Deus me podia dar». «Ai, sim?», perguntei-lhe, com curiosidade. «Fui eu que durante dez anos cuidei da minha irmã que não podia sair de casa e também tratei sozinho da minha mulher, nos últimos três anos de vida, aqui nesta casa. Esta dupla riqueza já ninguém me pode tirar». Sem conseguir articular bem as palavras, disse-lhe apenas: «Que orgulho! Aprecio o seu exemplo! Fantástico!».
No regresso ao meu local de trabalho, aquelas palavras não me saíam da cabeça. Só pensava na lição que este grande homem me tinha dado e na qual todos devemos refletir. Por isso, aqui deixo mais este caso da vida real, especialmente à consideração dos que procuram ver «o essencial invisível aos olhos».
Nos nossos dias, testemunhos destes já é raro encontrar. Ser-se rico à custa de bens materiais vai-se vendo, toda a gente fala deles e a vida tem apenas um sentido. Mas quando se é rico na pobreza, os valores são outros, e pouco se fala. É um privilégio só para alguns. E nós? De que lado nos colocamos?
(Por se tratar de um caso da vida real, o nome do doente está trocado)