Carta aberta de repúdio pelos excessos de ruído noturno em Alcácer do Sal

O que se passou na madrugada de domingo para segunda (29 de julho) em Alcácer é de uma gravidade extrema e, para que tal não volte a repetir-se, estou preparado para avançar até às últimas consequências.

O direito ao descanso e ao sossego na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça: 
 
«Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça Assessoria Cível. 
 
VI – Face à lei civil deve entender-se que o direito de oposição à emissão de ruídos subsiste mesmo que o seu nível sonoro seja inferior a 10 decibéis e que a atividade donde eles resultam haja sido autorizada administrativamente.
 
VII – Havendo colisão de direitos de espécies diferentes (dum lado o direito à integridade física, ao sono… e do outro o direito ao exercício de uma atividade comercial), prevalece o que deva considerar-se superior, nos termos do n.º 2 do art.º 335 do CC e não há dúvida de que o direito ao repouso é de valor superior ao direito ao exercício de uma atividade comercial». 
 
06-05-1998 Revista n.º 338/98- 1.ª Secção Relator: Cons. Fernandes Magalhães 
 
Exmos. Senhores,
 
Representantes eleitos da Câmara Municipal de Alcácer do Sal
 
a) O que se passou na madrugada de domingo para segunda (29 de julho) em Alcácer é de uma gravidade extrema e, para que tal não volte a repetir-se, estou preparado para avançar até às últimas consequências para pôr um ponto final neste quero posso e mando de um município que, de um momento para o outro, parece governado à deriva da irresponsabilidade.
 
b) Com que direito é a CMAS autoriza, dinamiza e patrocina um regabofe pornográfico de barulho até às duas horas da manhã da véspera de um dia de trabalho, insultando, ignorando e violando o direito ao descanso dos seus cidadãos que trabalham e que não estão disponíveis para serem vítimas de um desmesurado atentado ao pudor como o que sucedeu??? Que gente governa uma cidade sem ter em consideração que muitos dos seus cidadãos trabalham e levantam-se cedo, despedaçando com um salsifré grotesco o direito que temos a dormir às horas que, na véspera de um dia de trabalho (repito e sublinho), pertencem ao domínio da nossa intimidade e sossego???
 
c) Os abusos de ruído têm vindo a tornar-se uma prática em Alcácer do Sal e a correspondência trocada por mim e por V. Exas. já é bastamente longa em relação à matéria. Tem a Exma. Sra. Dra. Ana Mendes, do Gabinete de Apoio à Presidência, tido a amabilidade de de me responder – tal como fica aqui demonstrado – mas as diferenças são, pelos vistos, insanáveis. Tornar o assunto público (já que, pelos vistos, essa correspondência tem sido divulgada, e não por mim, alimentando situações desagradáveis), servirá para que cada um possa perceber o que nos mantém em divergência.
 
d) Se o município se orgulha de uma política cultural baseada no barulho e na promoção de festas todos os fins de semana, que atente igualmente aos níveis de ruído que atingem essas festas e festivais e entenda que, tal como há quem não se importe com a desobediência à Lei do Ruído, há quem seja defendido por ela. E que o Direito ao Repouso sobrepõe-se ao direito a atividades culturais e comerciais, sobretudo quando esse ruído ultrapassa abusivamente as quatro horas da manhã. Mas, por muito que sintam que o facto de terem sido eleitos lhes transmite alguma espécie de poder divino, incontrolável e inquestionável, não lhes cabe o direito de desgraçar as madrugadas de cidadãos trabalhadores que necessitam do seu descanso.
 
e) Na madrugada de 29 de julho, depois de aquilo que V. Exas. considerarão, talvez, um concerto, a mixórdia prolongou-se. Gente embriagada aos gritos, buzinas de automóveis, uma pocilga que a CMAS alimentou e que só acalmou ao nascer do sol. Agirei com as medidas que me são postas à disposição. Avancei, de imediato, com uma queixa à Provedoria de Justiça. Farei os impossíveis para que esta questão não morra de forma alguma e que V. Exas. sejam exemplarmente punidas pelas longas noites que temos passado sem dormir apenas por capricho de gente incapaz de entender que Alcácer não é composta apenas por foliões que pretendem divertir-se a todo o custo até ao fim das madrugadas, mas sobretudo por gente trabalhadora e que devia merecer da parte de V. Exas .o máximo respeito.
 
f) V. Exas. teimam em exibir uma gravosa pesporrência, ignorando queixas atrás de queixas, mantendo até a fiscalização da Guarda Nacional Republicana. Então a GNR, perante um pedido de controlo de decibéis, afirma que só a CMAS possui aparelhos para esse controlo???? A CMAS agora controla-se a si mesma, passando ao lado da entidade fiscalizadora do município que é a polícia???? Isto, tal e qual como me foi transmitida pela própria GNR nas várias queixas que também lhes apresentei. E aqui se publica uma das respostas: 
 
«Relativamente à denúncia enviada por V. Exa. ao Posto da GNR de Alcácer do Sal, a qual mereceu a nossa melhor atenção, somos a informar V. Exa. que face ao teor da denúncia, foi a mesma enviada ao Município de Alcácer do Sal, para os fins tidos por convenientes, sendo que, paralelamente foram encetadas diligências através do Posto Territorial de Alcácer do Sal, no sentido de ser averiguada a situação, nomeadamente o ruído de vizinhança. 
 
Com os melhores cumprimentos,
Miguel Ângelo da Silva Mendes,   
Alferes
Comandante do Destacamento, em suplência»
 
Então as queixas remetidas à GNR sobre o que considero abusos municipais, regressam ao município como pescadinhas de rabo na boca??? Não há aqui, a vosso ver, uma perigosíssima inversão daquilo que deve ser o controlo de uma fiscalização???
 
g) Ainda há Justiça para dirimir questões como esta, por mais lenta que seja. Irei, como disse, até às últimas consequências! A madrugada do último domingo de Julho foi uma das maiores demonstrações de ultraje feito por um município aos seus cidadãos trabalhadores que tiveram, certamente, pela frente, uma das piores segundas-feiras das suas vidas. Reafirmo o meu mais profundo repúdio por este tipo de tratamento e comportamento por parte de V. Exas.
 
NOTAS
 
1. Não conheço o presidente da CMAS e só uma vez me cruzei pessoalmente com ele quando o encontrei na companhia do meu amigo Fernando Tordo, pelo que a indignação transmitida não é, de forma alguma, individual. Também não me interessa a sua vida privada nem as suas relações pessoais. Será sempre território inviolável! Por uma questão de princípio. E de direito.
 
2. Vivo em Alcácer há mais de ano e meio. Escolhi Alcácer para viver e é, para mim, uma das cidades mais aprazíveis, tranquilas e bonitas do país. É lá que vivo com muita satisfação e orgulho, testemunhado pelos que convido a juntarem-se a mim para, em Alcácer, usufruírem de um dos poucos paraísos que ainda sobram neste país bisonho. É lá que sou tratado com toda a consideração e carinho por amigos, vizinhos ou simples conhecidos. A intervenção política só me interessa por questões cívicas. Ou quando é utilizada em nome de um poder desbragado. 
 
3. Não adianta enviarem-me recados impróprios de um Estado que se quer de Direito – «Não gosta, vá viver para outro lado!», e outras porcarias do género. Cada um, em Portugal, vive onde quer. E tem direitos. E deve bater-se por eles quando são desrespeitados, como é o caso. Ameaças contra a minha tranquilidade quotidiana, contra os meus bens ou contra a minha pessoa física, só me fazem mais irredutível. Não sou sensível a esse tipo de canalhices. O 25 de Abril fez-se, felizmente, para alguma coisa. E, por minha parte, continuará a ser feito todos os dias. Alcácer do sal é terra de gente de bem. Tem mais de 800 anos de História e os seus habitantes são calorosos. Receberam-me com uma ternura que retribuo diariamente. Tal como recebem os meus parentes e amigos que, pelo facto de a ter escolhido como local para viver, descobriram ou redescobriram os seus caminhos, visitando-a com regularidade e sentindo-se como em sua própria casa. Sei que a gente de Alcácer, a gente a sério de Alcácer, não se revê nesse tipo de atitudes baixas. Porque são parte de um povo que respeita e quer respeito. 
 
4. E é, afinal, sobre respeito que tenho querido e que estou aqui a falar. E não serão os desmandos de V. Exas. que poderão impedir-nos de afirmar que é bom viver em Alcácer!