O catastrófico terramoto de grau 9 na escala de Richter e o subsequente tsunami no Dia de Todos os Santos de 1755 terminou com a centenária fama de Lisboa como cidade líder do iluminismo e da cultura. A enorme destruição provocada pelo fogo e pela água em praticamente todos os seus excepcionais edifícios, que incluíam o Palácio Real, o Convento do Carmo, basílicas e igrejas e exemplares da arquitectura Manuelina do seculo XVI, afetou também os arquivos e bibliotecas de música ibérica dos períodos Renascentista e Barroco que ali se albergavam. Muitos destes manuscritos eram insubstituíveis mas outros foram copiados e dispersos por bibliotecas em centros culturais europeus e por locais mais longínquos como o Brasil, o Peru e o México.
Lisboa Debaixo de Cinzas é o título de um CD (PC 10385) do agrupamento A Corte Musical, que compilou meticulosamente música portuguesa de múltiplas fontes. Muitas das composições são anónimas mas Manuel Botelho de Almeida e Frei Filipe de Madre de Deus são identificados em peças de singular beleza. Todas são apresentadas com empatia por este grupo suíço liderado por Rogério Gonçalves e dedicado à redescoberta da música europeia dos séculos XVII e XVIII.
A maior biblioteca da Europa
O período barroco português inicia-se nos anos 1600, quando Portugal estava unido politicamente à Espanha sob os auspícios da Dinastia dos Habsburgo, reconhecida pela sua liberalidade perante as artes, que eram generosamente patrocinadas pela realeza e pela aristocracia. Isto levou a um grande intercâmbio de músicos e compositores por todo o vasto império e as escolas estabelecidas em Coimbra, Alcobaça, Évora e Lisboa beneficiaram do influxo de artistas dotados. Em Vila Viçosa, o duque de Bragança nomeou Roberto Tornar (Robert Turner, nascido em Inglaterra ou na Irlanda) mestre de capela. Este iria tornar-se tutor musical do futuro D. João IV, que viria a transformar a já impressionante biblioteca do pai na maior biblioteca daquele tempo na Europa.
O enorme sucesso da ópera em Lisboa
Após a independência de 1640 este processo continuou aceleradamente em todos os domínios em que o instrumento litúrgico por excelência era o órgão, no qual os compositores portugueses, liderados por Manuel Coelho, eram reconhecidos como os mais exímios da Europa. Mas a música secular atingiu uma popularidade mais vasta que atingiu a florescente classe média, que apreciava as canções de amor, amizade e perda nos seus salões e festividades. De notar em particular a popularidade do vilancete escrito em verso octossilábico para quatro ou cinco vozes. O Cancioneiro de Évora, cidade de eterna cultura, é uma coleção notável destes trabalhos produzidos por mestres como Manuel Cardoso, Duarte Lobo, Filipe Magalhães e Manuel Mendes, os representantes da Idade de Ouro da Polifonia Portuguesa.
O Rei D. João V, O Magnífico, contribuiu decisivamente para esta transição na sociedade e na cultura ao criar várias escolas de música para a formação de músicos profissionais e sendo alguns enviados para Itália. Em troca, trouxe de Roma Domenico Scarlatti, que, a par da sua atividade eclesiástica, encontrou tempo para escrever várias óperas que foram apresentadas no Palácio Real, e abriram caminho para que a companhia de Alessandro Paghetti fizesse as suas primeiras atuações no Teatro da Trindade em 1735. O sucesso foi enorme e seguiram-se outras peças nos teatros na Rua dos Condes e no Bairro Alto por António José da Silva e outros autores. A atividade operática atingiu o seu zénite com a abertura da monumental Ópera do Tejo por David Perez em março de 1755 apenas para ruir oito meses depois.
Este resumo breve do Barroco não estaria completo sem uma referência ao trabalho de Carlos Seixas, um prodígio, que em 1720, com a idade de dezasseis anos, abandonou o seu trabalho como organista na Catedral de Coimbra para se juntar a Scarlatti. Tornou-se o mais importante compositor de teclado daquele tempo e escreveu mais de cem sonatas e um concerto para cravo e cordas.