Os resultados das próximas legislativas podem ser viciados pelo enorme absentismo. É necessário mobilizar o eleitorado e combater a abstenção. E isso não se faz com novos partidos ou com círculos uninominais. Faz-se, sim, com a democracia digital – com a introdução do voto eletrónico.
Mas é preciso também assegurar pluralismo nos órgão de comunicação social e o tema torna-se mais atual quando corremos o risco de, graças à abstenção, a esquerda, a 6 de outubro, hegemonizar o poder legislativo e, a partir daí, tomar conta do aparelho executivo e judicial.
Por isso, o alerta, esta semana, do Presidente da República sobre a necessidade de financiamento público dos órgãos de comunicação social.
A agenda de controlo político dos jornais pela esquerda, em Portugal, vem desde o governo de António Guterres. Teve um rosto: chamava-se Jorge Coelho.
Mas é uma agenda que ganha especial dimensão no Governo de José Sócrates, com a tentativa de controlo da TVI e no ataque aos grupos de comunicação, através de Armando Vara no BCP e Ricardo Salgado no BES, que atuaram no interesse dos socialistas.
Com António Costa o trabalho fica terminado, ou não fosse este um governo-Sócrates sem José Sócrates e com Jorge Coelho reconciliado. Bingo!
A quase totalidade da imprensa autónoma de centro-direita foi ‘amansada’, desacreditada ou dizimada – desde o Semanário ao Independente, passando por alguma imprensa económica.
A disrupção tecnológica fez o resto. Perderam-se em definitivo os hábitos de leitura e as televisões cederam à lógica das audiências e do sensacionalismo fácil, perdendo as audiências elitistas de outrora (muitas delas transferidas para as redes sociais), e contratando, na exiguidade da nossa intelligentsia, comentadores que apenas vão fazendo o jogo do governo. A magnífica entrevista desta semana de Rui Rio, mostra como, hoje, nem o maior partido da oposição conseguiu fazer passar a sua mensagem.
Mas o problema é mais profundo: para além da manipulação e autocensura, a própria modificação dos instrumentos ideológicos provoca também uma mudança da narrativa ideológica. Ou seja, a natureza da democracia depende do tipo de comunicação dominante.
A democracia representativa corresponde à comunicação do século XIX e XX. A mediação da vontade popular através dos representes eleitos era tipicamente controlada pela informação mediada pelos jornalistas (e donos dos jornais).
Agora, as redes sociais e os media modernos estão mais próximos da democracia direta.
O fenómeno traz novos perigos. Já Platão reconhecia os limites da democracia direta, onde as paixões e o imediatismo levaram ao maior dos crimes: a condenação de Sócrates à morte.
É com o pensamento liberal que o princípio aristocrático de Platão é substituído pelas ideias democráticas da representação e limitação de poderes (separação e respeito das minorias) e sobretudo, com a formulação do Estado de Direito, um legado do positivismo, que fica construído o fantástico acervo da democracia moderna.
O excesso popular era equilibrado pelas elites cultas e estas eram moderadas pela separação de poderes, pelo Direito e pela comunicação social.
A utopia do Governo de dados, que a inteligência artificial anuncia agora, vai numa deriva determinista diversa – mais na linha da aristocracia platónica ou da burocracia da URSS – em que a liberdade resta como pormenor histórico ou uma medida do desconhecimento e o livre arbítrio não é mais que falta de informação ou plano. O Governo de dados é o triunfo da tirania do conhecimento, a utopia realizada que anula a argumentação liberal de Mises.
Mas, com as redes sociais, as pessoas também se pronunciam diretamente e é possível aferir imediatamente a legitimidade de uma decisão dos representantes.
A República vive em referendo permanente e o escrutínio dos media passa para o nível individual, deixando de ter a mediação dos jornalistas. Aqui, o problema é o oposto ao do Governo de dados: nas redes sociais não é o conhecimento e a reflexão que prevalece, mas as paixões e a manipulação das massas ao serviço de alguns, como explicou Platão.
É esse choque entre a legitimidade direta referendada e a decisão do Parlamento, por exemplo, no caso do Brexit, que permite a oposição entre o eleitor e o seu representante, o que legitima a manipulação populista mas, também, explica a derrota do popular Boris Johnson.
Por isso, nesta época disruptiva, é crítico à manutenção da democracia que existam espaços de reflexão e que os governos não possam asfixiar os jornais que restam, de modo a dar esperança às pessoas com alternativas. É que sem alternativas, o eleitorado também não vota e as maiorias fazem-se com menos votos, o que falsifica a própria democracia; e sem escrutínio dos jornais, os partidos hegemónicos tendem ameaçar a separação de poderes e o Estado de Direito, o que abre caminho à tirania.
Daí o aviso de Marcelo, já a pensar na próxima legislatura e no seu magistério.